Depois de tudo

Depois de tudo – capítulo 05 : #partiufestadedespedida

#partiufestadedespedida

 

A água quente do chuveiro cai sobre o meu corpo enquanto fecho os olhos para enxergar com perfeição “Thiago” parado à minha frente, suas formas perfeitas, bem definidas, sem exageros, na medida certa…

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Ele está vestido de uma maneira absurdamente sensual: uma camisa polo lisa, preta, com gola listrada, aberta, deixando à mostra a base do seu pescoço, valorizando ainda mais a sua silhueta de falso magro e seus ombros fortes; a calça, de carga, apertada no corpo, faz maravilhas, valorizando sua virilha, sua bunda…

Respiro forte. Meu peito arfa.

Viro-me de frente para a ducha e deixo a água correr sobre minhas costas ao mesmo tempo em que apoio minhas mãos na parede…

Não consigo ouvir nada a meu redor. Nenhum som alcança o meu cérebro.

De repente eu e “Thiago” estamos subindo uma enorme escadaria onde uma iluminação bastante precária nos rodeia; eu na frente, ele seguindo meus passos. O silêncio toma conta de tudo, assim como um clima de uma pretensa tensão sexual, que a cada minuto se torna menos e menos latente…

Enfim chegamos a um quarto onde apenas uma cama ocupa o pequeno espaço… Numa fração de segundos já estou sentado sobre o colchão descoberto, cru, enquanto “Thiago” se aproxima, parecendo uma ave de rapina se preparando para atacar uma vítima indefesa… 

Sinto um suor frio escorrer pelo meu rosto apesar da temperatura quente da água do chuveiro.

Meneio a cabeça, respiro de uma só vez e por fim desço minha destra até a virilha…

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Com os braços esticados, abro o zíper da calça que “Thiago” está vestindo sem nenhuma pressa, ao mesmo tempo em que olho para o alto e me deparo com seu sorriso meio de lado, provocador, me convidando, me desafiando a continuar o que comecei…

Volto a sentir a água do chuveiro tocando minha pele, mas dessa vez é como se todo o meu corpo estivesse levando choques.

O zíper da calça de carga está entreaberto, o suficiente para entrever que “Thiago” está com uma cueca boxer branca…

Engulo em seco…

De súbito ele me faz levantar.

Sinto nossas respirações ofegantes enquanto nos encaramos…

“Thiago”, então, coloca uma de minhas mãos dentro de sua cueca ao mesmo tempo em que eleva a outra até a altura de seu peito, fazendo-as deslizarem numa sincronia perfeita de movimentos…

Quem é você? Pergunto, umedecendo os lábios.

O que você quiser que eu seja. Ele responde de pronto, entre sussurros, com a boca tocando o lóbulo de minha orelha, exalando virilidade e sedução…

Os movimentos de minha mão se aceleram vertiginosamente, assim como minha respiração, enquanto mantenho os olhos fechados, apertando-os com muita, muita força a fim de não perder a concentração.

Uma sensação de prazer intenso atinge cada um dos meus músculos. Meus batimentos cardíacos aceleram. Meu fôlego, cada vez mais rápido e também mais curto…

O suor jorra da minha pele como um motor prestes a fundir…

Medo, raiva e prazer se misturam até um espasmo tomar conta de todo o meu corpo, fazendo-o se contorcer, involuntariamente, me forçando apoiar, num gesto violento, as costas sobre a parede…

Desligo o chuveiro. Algumas gotas de água ainda caem sobre mim… Minha respiração, aos poucos, vai retomando o seu ritmo natural.

Imóvel, abro os olhos e fixo o chão por alguns instantes. Uma sensação de relaxamento começa a me invadir e então ergo a cabeça, enfim, e apanho a toalha que está descansando, pendurada, sobre a porta do Box, e começo a me enxugar; meus braços e pernas parecem estar em câmera lenta.

Termino de me secar, coloco a toalha em volta do pescoço, abro a porta do Box e caminho para frente do espelho, onde com a mão esquerda tento limpar um pouco do vapor – que também tomou conta de todo o banheiro – conseguindo apenas fazer uma pequena trilha sobre a sua superfície, de onde enxergo parte do reflexo embaçado do meu rosto.

Arrependimento, decepção e frustração é que encontro.

Dou de ombros ao mesmo tempo em que vejo meus lábios se curvarem para baixo; imediatamente trato de estampar em meu semblante uma expressão de notória rispidez, orgulho…

– Vou lembrar, refletir, mas tudo bem… Sei que no final de alguns dias tudo isso será mitigado, será poeira, será deixado pra trás, e você, Sr. Thiago com aspas, sumirá como os outros… – delibero me deixando tombar diante de uma irrefutável resignação

***

Pronto.

Banho tomado e cheirosinho.

Vou zoar muito na minha festa de despedida. Tô merecendo depois desse dia.  

Dou dois tapas no meu rosto e arqueio uma das sobrancelhas enquanto encaro meu reflexo no espelho do armário do meu quarto.

Até que não sou feio, poxa. Posso não me enquadrar no padrão Disney de qualidade dos príncipes encantados, mas sou um filezinho bem passado com esse meu rostinho triangular, sobrancelhas e pestanas escuras, meu cabelo castanho claro…

Atiro a toalha que está em volta da minha cintura sobre a cama e passeio bem devagar os olhos sobre o meu corpo…

Meu biótipo pode até ser magro, mas graças à natação, à academia e ao judô tenho uma silhueta timidamente definida, com nada fora do lugar…

Tento pegar um pouco de pele na minha barriga, mas não consigo encontrar nada para agarrar e então deixo escapar um sorriso silencioso e debochado no canto dos lábios, presumindo, vaidoso, que o idiota do David jogou tudo isso fora pra mergulhar no corpo humano de um balzaquiano, que por mais inteiraço que possa ser, duvido que já não tenha algumas (muitas) gordurinhas aparecendo na barriga e pés de galinha ciscando ao redor dos olhos.

Apanho o meu roupão preto dentro do armário (graças ao Criador minha mãe não o encaixotou ou o enfiou dentro de alguns desses sacos semeados pelo chão) e o visto como se estivesse colocando um fraque, sem pressa e com prazer, e com ele aberto dou um giro em torno de mim mesmo, assim como Madonna fez em uma cena do filme Evita enquanto experimentava vários casacos de pele.

Apesar de fazer parte de uma geração que idolatra Beyoncé, Jennifer Lopez, Rihanna, Taylor Swift e Miley Cyrus (alias, por onde anda a Hannah Montana, hein?), AMO MADONNA! Assim como também sou apaixonado pelos anos 80, as séries, as músicas (ainda vou tomar coragem pra ir a uma festa ploc), Kid Abelha, Roupa Nova, Legião, RPM, Boy George, os Goonies…

E o ABBA!

Pelo amor do Criador!

Dou outro giro em torno de mim mesmo e canto um trecho da música Dancing Queen com direito à coreografia igual (ou quase) do filme Mamma Mia.

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¹You can Dance

You can jive

Having the time of your life

See that girl

Watch that scene

Digging the Dancing Queen

 

Batidas repentinas na porta (que está trancada, lógico) dão cabo do meu show particular.

Um Oscar para quem adivinhar a pessoa que está do outro lado girando a maçaneta como um serial killer, em um filme de suspense, disposto a invadir o quarto do protagonista.

– Lucas, querido, só para lembrar, a Gabriela está te aguardando.

Grito que já vou.

– Tudo bem, mas não se esqueça de que você não está indo para um casamento…

Reviro os olhos e conto até dez e deixo os ombros caírem.

Por que meus pais não tiveram mais um filho?

Respiro fundo e volto a encarar o meu reflexo no espelho, mas dessa vez virando-me de lado para conseguir uma visão de perfil, constatando, orgulhoso, que realmente nada está fora do lugar.

Uma súbita sensação de pesar e infelicidade me invadem. Um vazio absurdo começa a tomar conta do meu peito…

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Num esforço hercúleo ergo a cabeça com um gesto um tanto afetado, parecendo um rei buscando convencer a si mesmo de sua majestade há muito perdida, e por um instante não reconheço a imagem que o espelho me devolve e tenho a impressão de que estou vendo a mim mesmo pela primeira vez, o rosto tenso, as sobrancelhas escuras agarrando-se à minha pele, assustadas como asas de pássaro…

Nada mais que uma aparência dura e amedrontada.

Deixo um ar pesado escapar dos pulmões e então me volto para a direção da cama, onde a roupa nova que vou usar na festa de despedida está disposta, aguardando (desesperadamente) para ser usada.

– Será que devo contar para Gabriela sobre o Thiago com aspas?

***

Chego à sala e encontro Gabriela e minha mãe sentadas no sofá (todo coberto pelo lençol bege) conversando tranquilamente como se estivessem saboreando um tradicional chá das cinco, com toda pompa e circunstância, nem parecendo que estão no meio de um pandemônio de caixas de papelão, fitas adesivas, plástico bolha, pincéis atômicos e otras cositas mas.  

Minha amiga está segurando um copo com sua mão direita enquanto sorri, dispensando toda sua atenção, notoriamente sendo gentil, retribuindo a hospitalidade de dona Lúcia.

Para minha mãe é inadmissível, por mais rápida que possa ser, e mesmo com a casa de pernas para o ar como está, uma visita não aceitar, sequer, uma bebida, uma água que seja, até mesmo Gabriela, afinal, já se vão oito anos desde que eu e minha amiga nos conhecemos, quando os pais dela se mudaram para esse condomínio, e de lá para cá nunca mais nos separamos, transitando, naturalmente, no apartamento um do outro como se fizéssemos parte da família.

– Vamos? – lanço a pergunta para Gabriela, que está sentada de frente para mim, ao mesmo tempo em que reviro os olhos na direção da porta (tomando cuidado em não ser flagrado por dona Lúcia), denotando a minha urgência em querer sair desse apartamento o quanto antes.

Minha mãe demora um pouco para se virar, mas assim que o faz nossos olhos se encontram e por um segundo tenho a impressão de identificar em sua fisionomia um brilho de triste orgulho, porém a alegria feroz de seu sorriso dissipa de imediato essa sensação certamente equivocada de minha parte.

Bom, acho que para alguém egoísta, até que fui bem…

– Você está lindo, querido, com essa blusa social xadrez… – dona Lúcia começa a me elogiar enquanto me examina de cima a baixo, fazendo um sinal com um leve aceno de cabeça para que eu me aproxime -… Com esse colete cinza chumbo e essa calça jeans com lavagem básica.

É assim que minha mãe tece os seus elogios. Os adjetivos nunca vêm sozinhos. Estão sempre acompanhados da descrição das peças dos vestuários que estamos usando.

Será que ela sempre agiu assim ou somente depois que virou “colega de profissão” do Dr. Sigmund Freud?

Alcanço a parte detrás do encosto do sofá, onde paro, rígido, com as mãos entrelaçadas às costas, parecendo um daqueles guardas da realeza britânica. 

– Espero que se divirtam bastante – ela volta a encarar Gabriela que lhe responde com um sorriso daqueles que nove entre cada dez dentistas desejam para os seus pacientes.   

– Iremos, com toda certeza, apesar de ser uma festa de despedida para mim por estar sendo deportado, ALONE, depois de amanhã, para um lugar tão, tão distante – respondo, arqueando uma das sobrancelhas e sorrindo ao melhor estilo Coringa de ser, enquanto minha amiga me encara, os olhos piscando fogo.

– Acho melhor irmos… – Gabriela não demora a sugerir, já se levantando, ao mesmo tempo em que deposita sobre a mesinha de centro o copo que vinha segurando.

Minha mãe também se levanta e eu dou um passo para trás.

– Então à meia noite o Príncipe Encantado estará em casa, não é mesmo? – dona Lúcia me devolve o sorriso irônico.

– Como assim? – não titubeio em questionar enquanto jogo minhas mãos para o alto – Pelo Criador, mãe, assim a senhora quebra a corrente.

– Não estou quebrando corrente alguma, Lucas Fabiano…

Sim! Eu tenho um nome composto, como todo personagem digno de uma novela mexicana.

Eu não sei onde meus pais estavam com a cabeça, na verdade não sei onde meu pai estava com a cabeça ao aceitar essa combinação medonha e me registrar sabendo que eu carregaria essa cruz para o resto da minha vida.

Depois de uma boa argumentação de Gabriela, dona Lúcia aborta a ideia da missão Cinderela e me deixa retornar para casa as duas da madrugada, com a promessa/condição de que eu ligarei para ela quando estiver saindo da casa do Rômulo, onde vai acontecer a minha festa de despedida.

– Qual é o teu problema? – Gabriela pergunta entre os dentes, já dentro do elevador, depois de nos despedirmos com um aceno simpático de “até logo” para minha mãe, que estava parada à porta do apartamento.

– Qual deles? – devolvo com sarcasmo.

Ela me lança um olhar fulminante.

– Preciso expressar toda minha insatisfação. A própria dona Lúcia me incentivou a isso – respondo num tom dez voz diabolicamente carregado de candura.

– Ok. Mas da próxima vez que decidir dar uma de Ché Guevara, tente não fazê-lo momentos antes de irmos a uma festa.

Encosto-me ao espelho que toma conta da parede às minhas costas e cruzo os braços.

– A senhora está super bem nesse tubinho preto acima do joelho, mas acredito que já deva ter ouvido isso de dona Lúcia… – comento, não fazendo o mínimo esforço em abrandar meu tom de pura provocação.

Gabriela, ao meu lado, joga a cabeça para trás num gesto de total impaciência, passando a me encarar com o rosto mais que flamejante.

– Acho que você devia enxergar mais o lado da dona Lúcia, sabia?

– Oi?

– É isso mesmo. A sua mãe está estressada com toda essa história da mudança de vocês, a separação… – a tolerância começa, aos poucos, tomar conta do semblante da minha amiga – Ela está tão esgotada que esqueceu meu nome por duas vezes enquanto estávamos conversando…

– E daí? – presumo com pouca importância.

– Não deve ser nada demais, porém o esforço que ela fez para lembrar me deixou incomodada… Tive pena dela.

E o meu estresse? – reivindico sem pestanejar.

Gabriela me ignora, veemente.

– Já te falei sobre a desconfiança que tenho de que meus pais e eu nos encontramos na época da Inquisição?…

– Sim – ela retruca revirando os olhos – Essa e todas as outras nas quais você foi um tirano impiedoso e seus pais suas vítimas indefesas.

Por incrível que possa parecer, conseguimos descer os doze andares até o hall de entrada do elevador sem escalas em qualquer outro andar. 

Gabriela é a primeira a sair e eu a sigo, de pronto, pelo curto corredor em forma de “L”, passando pelo aparador de madeira e pela luminária de luz baixa, que ocupam, de frente um para o outro, a parede pintada com um tom de cinza embaciado que vai sendo substituído por tons mais claros na medida em que o hall de entrada da portaria se aproxima com seu clima clean, móveis de traços retos, cores claras e sem estampas.

– Onde é o incêndio? – pergunto tentando alcançar Gabriela, que mesmo com seus 1,68m consegue ser tão veloz como uma lebre.

– Se o senhor não tivesse demorado tanto para se arrumar, já estaríamos na casa do Rômulo – dispara enquanto atravessa o saguão a passos largos.

Não respondo nada, apenas aproveito a posição de estar às suas costas para lhe fazer uma careta; o porteiro é testemunha da minha reação um tanto peculiar, mas se mantém na dele depois que lhe entrego um sorriso forçadamente simpático.

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Amo minha amiga, ainda mais com essa sua personalidade forte, sempre dominando as situações que acontecem em torno de si, não precisando da validação de ninguém para ser quem é, e algumas das vezes até mesmo passando a impressão de ser rude, mas quem a conhece, tão bem como eu, sabe que sob esse exterior colérico, Gabriela tem o mais terno dos corações, apesar do verdadeiro pavor de que essa sua fraqueza venha a ser descoberta.

Sinto o celular vibrar no bolso da calça jeans após mal ter alcançado a metade do caminho em direção à saída do condomínio.

Dona Lúcia não é tão rápida assim… Concluo sem demora, como também sem demora deduzo, com todas as probabilidades de certeza a meu favor, quem é a pessoa do outro lado da linha.

Decido ignorar a ligação, mas a curiosidade mórbida fala mais alto e então, depois de mais alguns passos, sucumbo e praticamente arranco o telefone do meu bolso e torço para não encontrar o número de David no visor…

Estaco e lanço um rápido olhar na direção da minha amiga.

Gabriela, já um pouco afastada, se vira e me vê inerte no instante em que volto a mirar o aparelho.

– Está tudo bem? – ela pergunta enquanto vai se aproximando até parar à minha frente…

– É o David – comunico um tanto claudicante – Não sei se quero atendê-lo.

– Então não atenda – Gabriela devolve sem titubear, girando nos calcanhares.

– Ele tá insistindo.

Ela se volta e praticamente toma o celular da minha mão, quase o derrubando no chão e eu não tenho tempo de impedi-la de fazer o que eu tenho certeza de que vai fazer.

– O que você quer David?

Eu encaro Gabriela, possesso, e ela me ignora completamente.

– Jura que ele postou isso?… Não… Não sabia… Mesmo?… Como pode ter certeza de que foi o Lucas?

Minha amiga é a personificação do cinismo. Tenho certeza de que o David está lhe perguntando sobre a minha postagem no Whisper.

– Ele foi ofensivo?… Jogou sua masculinidade no ralo?… Bom, se você tá dizendo, quem sou eu pra contestar…

Faço sinal para que ela desligue o telefone, mas Gabriela dá de ombros e continua.

– David, você já ouviu falar no Cazuza?… Isso… Um cantor… Já. Já morreu… Então, segundo ele, e eu concordo, veado é aquele animal que salta pelas florestas e bicha é aquilo que dá na barriga das pessoas que comem merda…

Eu vou matar a Gabriela e demonstro isso com o meu semblante totalmente transtornado. Ela está colocando fogo em uma fogueira que já estava praticamente em cinzas…

– Ah, vai se fuder você David. Quer saber de uma coisa? Se realmente o Lucas escreveu isso não mentiu, não é?… E quer saber do que mais? Ele já arranjou um namorado.

Ela desliga o celular e me devolve como se nada tivesse acontecido.

Sinto o ar me faltar.

– Qual é o seu problema? – pergunto resfolegante – Com certeza o infeliz agora vai aparecer na casa do Rômulo querendo tomar satisfações… E que papo é esse de que arranjei um namorado?

– Para Lucas com esse ataque de viadagem, pelo amor de Deus. Se componha. O David não foi convidado.

Gabriela volta a caminhar tomando a direção da saída do condomínio.

– Não te entendo. Você mesmo me disse que queria ver a cara do seu ex antes de ir embora…

– Não tenho mais certeza disso…

– Pensasse antes de postar aquela merda toda, meu amigo.

– Eu acho que não vou mais nessa festa…

Gabriela para e demora uns instantes até se virar para mim.

– Deixa de ser cretino e infantil…

– Ótimo. Todos tiraram o dia para me chamar de imaturo…

– É o que você está sendo – ela coloca as mãos na cintura. Parece que vai me engolir vivo – Eu te disse para ser superior ao David, mas o que você fez? – ela me encara, incisiva.

– Agi por impulso – respondo cabisbaixo.

– Nem pense em faltar na festa que todos os seus amigos se esforçaram para que ela acontecesse porque te consideram pra caralho. Não imagina as negociações do Rômulo para conseguir tirar os pais dele de casa, então não é justo que paguemos o pato só porque o senhor vacilou.

Percorremos o trajeto que resta até a saída do condomínio em total silêncio, onde, ao chegar, nos deparamos com um Corolla prata, quatro portas, à nossa espera, como dona Lúcia havia prometido.

Gabriela estaca ao lado de uma das portas traseiras do carro enquanto acena para o motorista, impedindo que ele desça para logo em seguida me encarar, sorridente, fazendo um biquinho ridículo com os lábios.

Deixo claro que não estou entendo nada (e realmente não estou).

– Como você é lento, Lucas – ela comunica refreando a sua impaciência – O senhor poderia abrir a porta para mim? Acabei de ser acometida pela síndrome da donzela da idade média – completa, piscando um dos olhos.

Deixo os ombros caírem, junto os lábios e jogo um beijo silencioso e carregado de deboche em sua direção. Ela sorri, meneando a cabeça para depois apertar minhas bochechas como se fossem as de um bebê recém-nascido.

– Uma pena você ser gay, Lucas – Gabriela lamenta em tom de galhofa -Acredito que daríamos um ótimo casal, sabia?

– Deixa pra próxima encarnação, madame.

Respondo, endireitando os ombros e simulando um arrepio para logo em seguida curvar um pouco do corpo para frente e esticar o braço direito na mesma direção, fazendo uma mesura, como um cavalheiro medieval oferecendo passagem a uma dama da corte.

– Por favor, senhorita – remato a reverência com uma inclinação sutil de cabeça e um semblante representando com esmerada perfeição o modo blasé de um aristocrata completamente entediado – Nossa carruagem nos espera.

Gabriela agradece, cínica, e se joga sobre o estofado de couro do Uber.

Fecho a porta e sorrio despretensiosamente e no instante em que estou me preparando para ficar de pé, ouço a canção Futuros Amantes, na voz de Chico Buarque, começar a tocar no rádio, que por sinal não demora a ser desligado pelo motorista.

É inevitável que a lembrança de “Thiago” chegue à minha mente nesse instante (HELP!) e com ela uma intuição, uma certeza, uma admiração que não faço a mínima ideia de onde venha, e acompanhada de uma sensação de vazio assinalando de que algo especial deveria ter acontecido lá na praia, antes de ele sumir do mapa para sempre… 

Não se afobe, não

Que nada é pra já

O amor não tem pressa

Ele pode esperar em silêncio

Num fundo de armário

Na posta-restante

Milênios, milênios no ar

 

Vou cantarolando os versos da música enquanto dou a volta para alcançar o outro lado do automóvel.

Meneio a cabeça, sabendo do quão tolo estou sendo, mas não posso deixar de me perguntar se também consegui deixar em “Thiago” essa mesma impressão, por mais efêmera que ela possa vir a ser… que ela vai ser! 

Nunca deixes de sorrir, nem mesmo quando estiver triste, porque nunca se sabe quem pode se apaixonar por teu sorriso.

– Lucas, você pretende chegar hoje na casa do Rômulo, não é?

A voz de Gabriela me traz de volta à realidade.

Preparo-me para entrar no carro, mas não sem antes presumir o quão cretino o destino está sendo comigo…

Se minha alma gêmea for algum daqueles matutos que moram lá no Sítio do Pica-pau Amarelo, eu juro que viro padre.

3 thoughts on “Depois de tudo – capítulo 05 : #partiufestadedespedida

  • “Se minha alma gêmea for algum daqueles matutos que moram lá no Sítio do Pica-pau Amarelo, eu juro que viro padre.” Me acabei de rir com isto.

    Gosto de comentar sempre quando as coisas me impressionam e acho que fiz isso nos capítulos de Depois de Tudo. Embora tenha lido e gostado do 4º capítulo, tive sérios problemas com o tempo e não conseguiu dividi-lo para um comentário. Acho que vou compensar a ausência do comentário no capítulo anterior neste aqui mesmo.

    Parece que tô precisando virar o disco, mas elogio aqui de novo a sua narrativa @nandocouto! Ao mesmo tempo em que a gente torce para que as coisas andem já que há uma expectativa sobre os rumos desta história, você nos faz ficar parados nos detalhes de uma ou duas cenas por capítulo. Longe disso ser ruim. Pelo contrário, nos prende (no bom sentido, claro!) numa cena cheia de detalhes, sentimentos e pensamentos que faz com que nos apropriemos cada vez mais do universo particular do Lucas. Não se trata de ser uma história com a temática gay, mas o estilo da narrativa também teria um alto nível, independente do enredo que estivesse sendo desenvolvido.

    Parabéns mais uma vez pela brilhante história e pela forma com que ela é conduzida: sem pressa, sensível e encantadora!

    • Dominus, por favor, não vire o disco kkkkkkk.  Saiba que me sinto lisonjeado, como todo ser humano, ao receber um elogio, mas as palavras que tu colocas em seus comentários chegam a me surpreender (no sentido mais positivo que possa existir) tamanha sensibilidade e carinho com que enxerga a narrativa dessa história, e sem julgar o “nosso” Lucas, que, venhamos e convenhamos, é o típico adolescente com suas qualidades e tantos defeitos, dando lições em como ser irritante, egoísta, sarcástico…  (Pelo Criador kkkk) e por que não imaturo, afinal, ter 17 anos (sem generalizar) é  isso. Ou quase isso… 😀

      Agradeço muito e farei isso sempre diante do seu reconhecimento e também de tantos outros leitores, que, como mostra audiência semanal, estão seguindo a trajetória do nosso “anti heroi” ☺😊😀

      Abs

      • “sem julgar o “nosso” Lucas, que, venhamos e convenhamos, é o típico adolescente com suas qualidades e tantos defeitos, dando lições em como ser irritante, egoísta, sarcástico… (Pelo Criador kkkk) e por que não imaturo, afinal, ter 17 anos (sem generalizar) é isso. Ou quase isso… ”

        A qualidade da narrativa está justamente neste ponto de apresentar um protagonista bem humano: qualidades e defeitos. Você foge do maniqueísmo quando coloca-o cheio de conflitos e passa bem longe do clichê de protagonista “bonzinho” que quer o bem de todos quando o apresenta como um egoísta. No fundo, somos muito egoístas, talvez o pior defeito do ser humano, mas também representa um pouco da nossa identidade. E o Lucas é humano a este ponto de pensar primeiramente em suas vontades e seus desejos ante o problema/desafio que está enfrentando.

        Não viro o disco então 🙂 😉

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