A Sete Chaves

Capítulo 1 – A Sete Chaves

São Paulo, Praça da Sé. Três horas da manhã. Sob a luz cálida que vinham das fachadas dos prédios e postes dormia a praça que estava longe do aspeto que tinha durante o dia. A Praça da Sé tinha duas faces muito distintas. Durante o dia, um centro comercial, por onde passavam milhares de pessoas apressadas quase esbarrando uma nas outras a caminho de suas obrigações. Elas dividiam espaço com os turistas que desbravavam o centro de São Paulo embalado pela trilha sonora do trânsito caótico já comum ali. A noite, no entanto, em nada a praça herdava aquele aspecto estressante. Ao contrário, repousava majestosa em um silencio pouco provável para uma grande metrópole como São Paulo. A multidão que durante o dia povoava a praça deu lugar para os moradores de rua e usuários de droga. Eles eram os únicos sinais de vida no local, pois tudo ali parecia dormir preguiçoso sob o velar da colossal Catedral Metropolitana que se erguia do chão e facilmente impressionava alguém. Afinal era a maior igreja de São Paulo e uma das maiores do mundo. Com uma arquitetura gótica e bizantina, a Catedral realmente fascinava. (Eram 96 metros de altura, 46 de largura e 11 de comprimento. Além de contar com um dos maiores órgãos da América do Sul com mil tubos. A frente dela uma alameda de enorme Palmeiras Reais ladeando o pequeno monumento de mármore, centralizado, em formato de estrela que representava o marco zero de São Paulo. Dali era possível medir todas as distancias das cidades brasileiras em relação a capital paulista.) Um clima soturno e sinistro era visível quando o silencio foi quebrado pelo frenético barulho de derrapagem de pneus no asfalto. Uma van modelo Renault Master em alta velocidade subiu a praça e seguiu indomável desviando- se de um grupo de maltrapilhos que consumiam crack próximo ao marco zero. Os curiosos presentes, mais sóbrios, espremiam os olhos procurando entender o que estava acontecendo diante. Não era todo o dia que viam um van subir a praça naquela ou qualquer outra hora do dia. Veloz, seguiu pela alameda de palmeiras reais ate frear bruscamente a poucos metros da escadaria da grande catedral. Alguns moradores que dormiam na escadaria acordaram pelo barulho e pela luz dos faróis do automóvel. Houve quem resmungasse e dissesse palavrões. A porta lateral da Renault Master abriu rapidamente. Havia pressa em se fazer o que quer que fosse. Um homem foi empurrado para fora do carro. Era alto, tinha porte atlético e estava completamente nu e visivelmente debilitado. Os braços soltos balançavam involuntariamente como braços de uma marionete fora do controle do ventríloquo. Não aguentando ficar de pé ele caiu de joelhos. O rapaz ergueu os olhos para o alto. Ele havia reconhecido aquele local. Catedral da Sé! E exclamou agonizante:

– Seja feita a Tua vontade!

O estampido de dois tiros ecoou sinistro em toda praça afugentando um bando de pombas que dormiam nas torres da igreja. O homem caiu de bruços, sem vida, na laje fria da praça. Um objeto preto foi arremessado de dentro do carro e caiu a poucos metros do corpo. Era um livro de capa escura. Agora se podia ouvir somente o ruflar das asas abafando o eco dos tiros que cessou gradativamente como um volume de TV. O doce barulho das assas dos pássaros alimentou o clima lúgubre do ambiente. Apavorados alguns correram e se esconderam. Outros, no entanto ficaram imóveis encarando anestesiados com o crack. A van deu partida e em marcha ré afastou-se do corpo. Fez uma curva fechada à esquerda da igreja, desceu da praça e avançou em alta velocidade pela Rua Joao Feijó.

Tudo que emitisse som aquela noite, tinha um tom sinistro. Foi assim até com os passos dos moradores correndo na praça ao encontro do corpo da vítima enquanto a van sumia quase despercebida na escuridão da noite. Uma senhora de cabelos emaranhada e agasalhada com pedaços de pano foi a primeira a se aproximar do corpo o suficiente para com clareza enxergar a macabra cena.

– Arrancaram a pele do homem! Meu Deus!

Rapidamente, um após o outro, chegaram as únicas testemunhas do ocorrido formando um aglomerado ao redor do corpo.

– Uma bíblia! Exclamou um rapaz reconhecendo o livro de capa preta que jogaram da van.

No entanto, a presença da Bíblia foi desprezada por todos. Estavam atônitos demais com a cena que presenciavam. As costas do rapaz estavam em carne viva. Arrancaram toda a pele e deixaram os músculos estriados bem visíveis. Já todo o resto do corpo estava coberto por tatuagens e formavam uma confusa tela, outrora viva, em desenhos grandes e minúsculos. Não havia nenhum documento, nem vestígio sobre a identidade do rapaz. Mais uma vida brutalmente tirada na noite de São Paulo.

 

A Van Renault Master havia feito uma perfeita manobra pelos becos e ruelas de São Paulo, traçando um ziguezague inteligente e premeditado pelos pontos que não eram monitorados por câmeras do sistema de segurança da cidade. Quem dirigia o veículo sabia bem o que estava fazendo e foi instruído para isso. Dentro do veículo, três passageiros além do motorista estavam sentindo o efeito da adrenalina correndo pelo corpo como uma explosão eufórica. O motorista era um rapaz de estatura mediana, aparência pálida e anêmica fumando um Djarum Black calmamente. Nem parecia que acabara de vitimar uma pessoa. Tudo aconteceu perfeitamente. Estava friamente tranquilo e sentia no peito a sensação de dever cumprido. Próximo a ele no porta-luvas estava guardada a pistola SigSauer P-232, que usou para cumprir sua missão na noite.

– Estão com medo? Perguntou após baforar uma densa nuvem de fumaça se divertindo com as expressões assustada dos companheiros do banco de trás. Não houve resposta. – Não precisam temer. – continuou – A irmandade é protegida por pessoas poderosas. Nada acontecerá a nós. A fidelidade de vocês será recompensada.

– Como? Ousou perguntar um deles, o mais forte e robusto.

– Fazer parte dessa sociedade já a maior recompensa da vida de vocês! Respondeu, abrindo o vidro do carro e jogando a butuca do cigarro fora.

Houve alguns minutos de silêncio. Era perturbadora a paz que aquele homem conduzia o veículo. Em sua mente ele não tinha matado ninguém, mas cumprido uma missão de grande valor para seus planos. Deixava escapar um leve sorriso no rosto vislumbrando o prestígio que receberia dos companheiros. Desde que ingressou naquela sociedade secreta, ele galgou uma carreira de elogios e luxuosas recompensas pelos seus feitos em prol da irmandade. Por isso prezava com esmero o posto de alta patente que ocupava. Ele via a feição assustada dos companheiros e se sentia satisfeito. Se sentia uma espécie de herói macabro.

– Para onde estamos indo agora? Perguntou um deles com a voz esganiçada.

– Eu lhes mostrarei.

A velocidade da van foi diminuindo progressivamente à medida que entravam em uma rua bem movimentada para o horário. Muitos carros de luxo estacionados, grupos de jovens bebendo e outros namorando. Um clima alegre e festivo, regado a álcool e drogas. A liberdade reinava gritante ali. Um território de prazer e muita luxúria. Uma placa com luz neon na fachada de um prédio vermelho com detalhes dourados se destacava com o nome em letras garrafais.

BOATE ELEMENTUS

Para os passageiros a placa foi mais que suficiente para entender que tipo de ambiente se tratava aquele. O veículo atravessou a movimentação que tomava toda a rua e seguiu até virar para a direita e entrar em uma rua iluminada por um único poste. Era um beco sem saída. Os dois passageiros se entreolharam imaginando o que haveriam de fazer ali. Somente ao se aproximarem mais um pouco do final do beco foi que perceberam um portão. O motorista sacou o chaveiro e apontou para frente. Imediatamente aquele portão abriu silencioso e a van sumiu na escuridão que se revelou por trás dele.

 

 

 

Quando a Guarda Metropolitana passou pela Praça da Sé, saltou à vista o pequeno aglomerado de moradores de rua próximo a escadaria da Catedral. Estacionaram a viatura e vidro desceu silenciosamente. Um dos guardas espremeu as vistas para distinguir o que acontecia. Observou por um instante. Ficar parado ali irritou o companheiro de ronda ao seu lado que baixando o quepe até cobrir os olhos, cruzou os braços e afundou sonolento no banco. Resmungou:

– Vamos embora cara! Esses sem-teto estão aí todo o dia você sabe…

Ele, no entanto nem deu ouvidos ao colega. Outra coisa já havia chamado atenção assim que conseguiu distinguir a cena na porta da Catedral.

– Parece que tem um corpo no chão! – Já abrindo a porta. – Vou verificar!

O motorista saiu e deixou para trás o companheiro que resmungava completamente indiferente ao que ele havia dito. Ventava frio na madrugada de São Paulo e ele abraçou o próprio corpo para se proteger enquanto caminhava. O murmúrio das pessoas aglomeradas aumentava, discutindo assustados. O guarda levantou os olhos para a Catedral que parecia crescer à medida que ele se aproximava. A cinco metros do exato local do aglomerado pode ouvir claramente algumas coisas…

– Você viu? A van subiu a praça numa velocidade impressionante cara! Disse um senhor.

– Não havia placa! Protestou à senhora que primeiro chegou ao corpo minutos antes.

O Guarda chegou ao grupo soltando ordens para que se afastassem. O grupo foi se desfazendo e abrindo um reto caminho até o guarda ter ampla visão da cena. Aquilo de imediato lhe chocou. Muitas rondas já fizeram pela capital. Em todas elas sempre se deparou com inúmeras situações, das estressantes às cômicas. Aquela, no entanto, estreou as nauseantes. Pois náusea foi o que sentiu ao ver o absurdo cenário tendo como protagonista um corpo nu, todo tatuado com as costas em carne viva caído no chão da Praça da Sé rodeado por uma poça de sangue.

– Todos se afastem, por favor! – Ordenou o guarda, – O que foi que aconteceu aqui?

O guarda não conseguiu compreender a ninguém, pois todos começaram a falar ao mesmo tempo.

– Silêncio! Vamos por vez, apenas uma pessoa fale! Disse o guarda em tom firme.

– Eu vi tudo! Seu policial foi uma van que veio correndo pela praça cantando o pneu. Eles pararam bem aqui perto da escadaria e jogaram o moço pra fora.

O guarda aproximou-se do corpo e agachou-se para olhar para o rosto do homem. Era jovem e sadio pelos traços. Esticando o pescoço para a senhora que falava perguntou:

– Mas já jogaram morto?

– Não! Ele estava vivo ainda. Mas aí alguém atirou de dentro e fugiram mais rápido que chegaram. Foram dois tiros!

– Ninguém se aproxime do corpo, por favor. Vou chamar a polícia civil. Falou o guarda enquanto se afastava e se dirigia até a viatura em passos apressados. O frio pareceu sumir de repente e pelo corpo uma onda de adrenalina lhe tomava.

Chegando à viatura deu dois socos no capô do carro e o companheiro acordou de sobressalto,  xingando.

– O que foi? – Perguntou desorientado. – Aconteceu o que cara?

– Tem um cara morto ali. – Disse abrindo a porta do carro e pegando o rádio, – disseram que uma van jogou ele ali e em seguida alguém disparou dois tiros.

– Vai chamar quem?

– Vou informar o caso para o DHPP! – O radio chiou contínuo. – QAP tem alguém na escuta?

Ao passo que a bandidos foram se especializando em certos crimes, a Polícia Civil de São Paulo teve a necessidade de criar delegacias especializadas para cada um deles. Ao DHPP, Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa competia esse tipo de crime. Assim que o guarda passou as informações pelo rádio ao departamento mais indicado para tal, voltaram ao local do crime com faixas de isolamento. O guarda que a princípio fizera pouco caso da movimentação na praça, agora alisava o queixo espantado com a cena.

– Não é todo dia que vemos algo assim! – Virando-se para os curiosos disse, – Isso não é obra de nenhum de vocês não né?

Um rumor de vozes negando se levantou na praça. Alguns deles logo se afastaram principalmente os que usavam drogas migrando para a Praça Dr. João Mendes, que ficava atrás da Catedral.

 

Tertia, quae caderbant! Saudou uma voz cavernosa pelo celular.

Fides et servitute! Respondeu uma voz feminina.

A mulher que recebeu esta ligação suspirou. Esperava o telefonema a noite toda. Aquela voz áspera e assustadora durante a madrugada seria capaz de causar medo a qualquer pessoa, mas àquela mulher o efeito foi reconfortante. Com ele viria a notícia que esperou toda a noite.

– A irmandade se sente grata pelos serviços que nos prestou. Graças a você derramamos o sangue do traidor!

Houve um silencio na linha. A mulher engoliu a seco. A espera por aquela notícia lhe arrancou o sono de toda a noite. Saber que alguém próximo a ela tinha sido morto não era uma alegria. Mas diante das circunstancias que levou isso acontecer, dava-lhe a sensação de ser menos culpada. Uma jovem iniciante na irmandade pleiteando reconhecimento lhe definia bem. Um misto de satisfação e dor por saber que aquela pessoa foi morta por causa de sua ajuda era o que sentia.

– Eu imagino o que deve estar sentindo. Acredite tomar uma decisão dessas para com um de nossos mais exímios companheiros não foi fácil. No entanto, foi preciso. Os planos da Irmandade estavam em jogo. Antes o sangue de um do que o de todos não concorda?

– Ele assumiu realmente que estava entregando os planos da irmandade para alguém?

– Sim assumiu. Ele já não era um de nós minha cara! Mas ele falou de algo muito estranho que ainda levanta suspeita entre nós…

– O que?

– Que uma grande obra dele revelaria a todos os nossos feitos. Ele repetiu isso inúmero vezes… Não sei se pelo efeito do clorofórmio, mas acreditamos não ser um blefe!

– As tatuagens nas costas! Exclamou a mulher seguramente.

O homem aquiesceu.

– Foi o que deduzimos. Agora a pele dele serve de tela para decoração de nosso salão!

O homem que falava tinha uma voz convincente e manipuladora. Era um dos mais importantes membros naquela sociedade secreta. Disposto a fazer tudo para protegê-la. Ele tinha grandes ambições dentro da sociedade. Almejava chegar ao topo. Acima de tudo e todos a nível mundial. Era o velho desejo de poder que cegava os homens!

– E agora o que faremos?

– Não te preocupe mulher. Seu ato prova o quanto és fiel a nós. Isso será recompensado. Os planos da nossa Irmandade podem seguir livres. A morte dele agora serve de aviso para caso outros queiram se aventurar da mesma forma que ele.

– E o grande sacrifício?

– Não podemos falar abertamente sobre ele por telefone. Todo o cuidado é pouco. Ademais esteja atenta ao meu contato! Bom dia.

O homem desligou o telefone. A voz dele ecoou por alguns minutos em sua mente. Sim, ela estava satisfeita porque seus líderes também estavam. Assim, conseguiu enfim deitar-se e dormir. Ela não era a única que agora respirava aliviada. Como uma teia de aranha, as ligações entre pessoas muito interessadas naquela morte se interligaram pelo país. Muitos se sentiam seguros pelo êxito que a Irmandade obteve em apagar esse grande sinal de perigo para seus planos.

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