A Peste em Família

A Peste em Família – Cap. 06, 07 e 08. Fim.

 

** Observação:  em diversas semanas tive problemas de acesso no site, perdao leitores pelo atraso.

 

 

 

Capítulo 06.

 

A peste em família.

Continuação de cena.

Uma historia de Marcelo Jr M. E Silva

CENA IX
Os mesmos, Carlotinha, Azevedo

Azevedo — Pode-se fumar nesta sala?
Eduardo — Por que não? Vou mandar-lhe dar charutos.
Carlotinha (baixo) — Por que nos deixou, mano? Henriqueta está tão triste! Eduardo — Tratava da tua felicidade.
D. Maria — Acha a nossa casa muito insípida, não é verdade, Sr. Azevedo?
Azevedo — Ao contrário, minha senhora, muito agradável; aqui podo-se estar perfeitamente à son aise.
Eduardo (a Pedro, na porta) — Traz charutos.

CENA X
Azevedo, Eduardo

Azevedo — Realmente, Henriqueta perde vista em uma sala; não tem aquele espírito que brilha, aquela graça que seduz, aquela altivez misturada de uma certa nonchalance, que distingue a mulher elegante. Eduardo (rindo-se) — Como! Já estás arrependido?
Azevedo — Não; não digo isto! É apenas uma comparação que acabo de fazer. Tua irmã Carlotinha é o contrário.
Eduardo — Sabes a razão disto?
Azevedo — Não…
Eduardo — É porque já vês Henriqueta com olhos de marido!
Azevedo — Talvez…

CENA XI
Azevedo, Pedro

Pedro — Charutos, Sr. Azevedo; havanas de primeira qualidade, da casa de Wallerstein!
Azevedo — Pelo que vejo já os experimentaste!
Pedro — Pedro não fuma, não senhor; isto é bom para moço rico, que passeia de tarde, vendo as moças.
Azevedo — Então é preciso fumar para ver as moças?
Pedro — Oh! Moça não gosta de rapaz que toma rapé, não, como esse velho Sr.
Vasconcelos, que anda sempre pingando. Velho porco mesmo!…
Azevedo — Mas tem uma filha bonita!
Pedro — Sinhá Henriqueta! Noiva de senhor!…
Azevedo — Tu já sabes?…
Pedro — Ora, já está tudo cheio. Na Rua do Ouvidor não se fala de outra coisa.
Azevedo — Ah! Quem espalharia? Apenas participei a alguns amigos…
Pedro — O velho foi logo dizer a todo o mundo. V.Mce. não sabe por quê? Azevedo — Não; por quê?
Pedro — Porque… Esse velho deve àquela gente toda da Rua do Ouvidor; filha dele gasta muito, credor não quer mais ouvir história e vai embrulhar o homem em papel selado. Então, para acomodar lojista, foi logo contar que estava para casar a filha com sujeito rico, que há de cair com os cobres!
Azevedo — Isso é verdade, moleque?
Pedro — Caixeiro da loja me contou!
Azevedo — Mas é infame… Um tal procedimento!… Especular com a minha boa fé!
Pedro — Sr. Azevedo, não faz idéia. Esse velho, hi!… Tem feito coisas…
Azevedo — Vem cá; diz-me o que sabes, e dou-te u a molhadura.
Pedro — Pedro diz, sim senhor; mesmo que V.Mce. não dê nada. É um homem que ninguém pode aturar… Fala mal de todo o mundo. Caloteiro como ele só. Rapé que toma é de meia cara. Na venda ninguém lhe dá nem um vintém de manteiga. Quando passa na rua, caixeiro, moleque, tudo zomba dele.
Azevedo — Um sogro dessa qualidade!… É uma vergonha! Vejo-me obrigado a ir viver na Europa!…
Pedro — Pedro já vem!… (Vai à porta e volta) Filha dele, sinhá Henriqueta… Mas Sr.
Azevedo vai casar com ela!…
Azevedo — Que tem isso? Gosto de conhecer as pessoas com quem tenho de viver.
Pedro — Pois então, Pedro fala; mas não diga a ninguém.
Azevedo — Podes ficar descansado!
Pedro — Sr. Azevedo acha ela bonita?
Azevedo — Acho; por isso é que me caso.
Pedro — Moça muda muito vista na sala!
Azevedo — Que queres dizer?
Pedro — Modista faz milagre!
Azevedo — Então ela não é bem feita de corpo?
Pedro — Corpo?… Não tem! Aquilo tudo que senhor vê é pano só! Vestido vem acolchoado da casa da Bragaldi; algodão aqui, algodão aqui, algodão aqui!
Cinturinha faz suar rapariga dela; uma aperta de lá, outra aperta de cá…
Azevedo — Não acredito! Estás aí a pregar-me mentiras.
Pedro — Mentira! Pedro viu com estes olhos. Um dia de baile ela foi tomar respiração, cordão quebrou; e rapariga, bum: lá estirada. Moça ficou desmaiada no sofá; preta deitando água-de-colônia na testa para voltar a si.
Azevedo — E tu viste isto?
Pedro — Vi, sim senhor; Pedro tinha ido levar bouquet que nhanhã Carlotinha mandava. Mas depois viu outra coisa… Um!…
Azevedo — Que foi? dize; não me ocultes nada.
Pedro — Água-de-colônia caiu no rosto e desmanchou reboque branco!…
Azevedo — Que diabo de história é esta! Reboque branco?
Pedro — Ora, senhor não sabe; este pó que mulher deita na cara com pincel. Sinhá Henriqueta tem rosto pintadinho, como ovo de peru; para não aparecer, caia com pó de arroz e essa mistura que cabeleireiro vende.
Azevedo — Que mulher, meu Deus! Como um homem vive iludido neste mundo! Aquela candura…
Pedro — Moça bonita é nhanhã Carlotinha! Essa sim! Não tem cá panos, nem pós! Pezinho de menina; cinturinha bem feitinha; não carece apertar! Sapatinho dela parece brinquedo de boneca. Cabelo muito; não precisa de crescente. Não é como a outra!
Azevedo — Então, D. Henriqueta tem o pé grande?
Pedro (fazendo o gesto) — Isto só! Palmo e meio!… Às vezes nhanhã Carlotinha e as amigas zombam deveras! Mas não pergunte a ela, não? Sinhá velha fica maçada. Azevedo — Não; não me importo com isto; mas vem cá; dize-me, nhanhã Carlotinha não gosta de moço nenhum?
Pedro — Qual! Zomba deles todos. Esse rapaz, Sr. Alfredo, anda se engraçando, mas perde seu tempo. Homem sério assim, como Sr. Azevedo, é que agrada a ela.
Azevedo — Então pensas que…
Pedro — Pedro não pensa nada! Viu só quando se tomava chá, risozinho faceiro…
segredinho baixo…
Azevedo (desvanecido) — Não quer dizer nada!… Moças!

CENA XII
Os mesmos e Alfredo

Alfredo (na porta da sala, a Eduardo) — Não se incomode. Boa noite!…
Pedro (baixo) — Então, Sr. Alfredo!…
Alfredo — Deixa-me.
Pedro (baixo) — Está todo emproado!… Como não precisa mais…
Azevedo (dando fogo a Alfredo) — Pedro, amanhã vai à minha casa; tenho uns livros para mandar a Eduardo.
Pedro — Sim, senhor. A que horas?
Azevedo — Depois do almoço.

CENA XIII
Alfredo, Azevedo

Alfredo — É raro encontrá-lo agora, Sr. Azevedo. Já não aparece nos bailes, nos teatros.
Azevedo — Estou-me habituando à existência monótona da família.
Alfredo — Monótona?
Azevedo — Sim. Um piano que toca, duas ou três moças que falam de modas; alguns velhos que dissertam sobre a carestia dos gêneros alimentícios e a diminuição do peso do pão, eis um verdadeiro tableau de família no Rio de Janeiro. Se fosse pintor faria um primeiro prix au Conservatoire des Arts.
Alfredo — E havia de ser um belo quadro, estou certo; mais belo sem dúvida do que uma cena de salão.
Azevedo — Ora, meu caro, no salão tudo é vida; enquanto que aqui, se não fosse essa menina que realmente é espirituosa, D. Carlotinha, que faríamos, senão dormir e abrir a boca?
Alfredo — É verdade; aqui dorme-se, porém sonha-se com a felicidade; no salão vive-se, mas a vida é uma bem triste realidade. Ao invés de um piano há uma rabeca, as moças não falam de modas, mas falam de bailes; os velhos não dissertam sobre a carestia, mas ocupam-se com a política. Que diz deste quadro, Sr. Azevedo, não acha que também vale a pena de ser desenhado por um hábil artista, para a nossa “Academia de Belas-Artes?”
Azevedo — A nossa “Academia de Belas-Artes?” Pois temos isto aqui no Rio?
Alfredo — Ignorava?
Azevedo — Uma caricatura, naturalmente… Não há arte em nosso país.
Alfredo — A arte existe, Sr. Azevedo, o que não existe é o amor dela.
Azevedo — Sim, faltam os artistas.
Alfredo — Faltam os homens que os compreendam; e sobram aqueles que só acreditam e estimam o que vem do estrangeiro.
Azevedo (com desdém) — Já foi a Paris, Sr. Alfredo?
Alfredo — Não, senhor; desejo, e ao mesmo tempo receio ir.
Azevedo — Por que razão?
Alfredo — Porque tenho medo de, na volta, desprezar o meu país, ao invés de amar nele o que há de bom e procurar corrigir o que e mau.
Azevedo — Pois aconselho-lhe que vá quanto antes! Vamos ver estas senhoras! Alfredo — Passe bem.

CENA XIV
Os mesmos, Carlotinha, Henriqueta

Carlotinha (a Henriqueta) — Já tão cedo? Que horas são, Sr. Azevedo?
Alfredo — Nove e meia.
Azevedo — Quase dez. Como passa rapidamente o tempo aqui! (Entra na sala) Carlotinha — Então! Demora-te mais algum tempo. Sim?
Henriqueta (baixo) — Para quê?… Ele nem me fala!
Alfredo — Minhas senhoras! Boa noite, D. Carlotinha.
Carlotinha — Adeus, Sr. Alfredo. Mamãe já lhe disse que a nossa casa está sempre aberta para receber os amigos.
Alfredo — Se eu não temesse abusar…
Carlotinha (estendendo-lhe a mão) — Até amanhã!
Alfredo — Boa noite! (Sai)

CENA XV
Carlotinha, Henriqueta

Carlotinha — Olha, Henriqueta! Tu não tens razão! Eduardo te ama, ele já me disse. Se hoje não tem falado contigo, é porque teu pai… Teu noivo… Não sei a razão! Mas deixa-te dessas desconfianças.
Henriqueta — Entretanto, depois de dois meses, ele devia achar um momento para ao menos dizer-me uma palavra que me desse esperança; porque, Carlotinha, se esse casamento era uma desgraça para mim, agora, que tu dizes que ele me ama, tornou-se um martírio! Não sei o que faça… Quero confessar a meu pai!… E tenho medo!… Já deu sua palavra!…
Carlotinha — A tua felicidade vale mais do que todas as palavras do mundo.
Henriqueta — Tu não sabes!…
Carlotinha — Ah! Aqui está Eduardo!

CENA XVI
As mesmas, Eduardo.

Eduardo — Enfim, posso falar-lhe, D. Henriqueta?
Carlotinha — Ela já te acusava!
Eduardo — A mim!
Henriqueta — Eu não; disse apenas…
Carlotinha — Disse apenas que tu ainda não tinhas achado um momento para darlhe uma palavra… De amor!
Henriqueta — De amizade! Foi o que eu disse.
Eduardo — E tem razão; mas quando souber o motivo me desculpará.
Henriqueta — Ainda outro motivo!
Eduardo — Sim; desta vez não é um engano, é um dever.
Henriqueta — Ah! Uma promessa, talvez…
Carlotinha — Que lembrança!…
Eduardo — Disse um dever; um dever bem grave, mas que tem um rostinho muito risonho; olhe. (Amimando a face de Carlotinha) Henriqueta — Carlotinha?
Carlotinha — Ah! Quer-se desculpar comigo! Pois vou-me embora!
Henriqueta (sorrindo) — Vem cá!
Eduardo — Deixe; ficaremos sós.

CENA XVII
Eduardo, Henriqueta

Eduardo — Henriqueta, me perdoa?
Henriqueta — Perdoar-lhe!… Eu é que devia ter adivinhado!
Eduardo — E eu não devia ter compreendido que entre duas almas que se estimam não é preciso um intermediário? O amor que passa pelos estranhos perde a sua pureza… Carlotinha já lhe disse o que aconteceu?…
Henriqueta — Sim; ela me contou tudo, mas pareceu-me que me tinha enganado.
Duvidei…
— Como?… Duvidou de mim!…
Henriqueta — Durante toda esta noite, não é a primeira vez que nos falamos e, entretanto, devíamos ter tanto que dizer-nos… Um tão longo silêncio…
Eduardo — Não lhe dei já a razão?… Antes do meu amor, a felicidade de minha irmã. É um pequeno segredo que ela lhe contará, se já não lhe contou. Precisava tranqüilizar o meu espírito, porque não desejo misturar uma inquietação, um mau pensamento, às primeiras expansões do nosso amor!
Henriqueta — Ah! Carlotinha também ama! Ainda não me confiou seu segredo!…
Ela ao menos tem um irmão que lê em sua alma; há de ser feliz!…
Eduardo — E nós, não o seremos?
Henriqueta — Quem sabe!
Eduardo — Este casamento é impossível!
Henriqueta — Por quê?
Eduardo — Porque vou confessar tudo a seu pai, e ele não sacrificará sua filha a uma palavra dada.
Henriqueta — E se recusar?
Eduardo — Então respeitaremos sua vontade.
Henriqueta — Sim, ele é pai, mas…
Eduardo — Mas o amor é soberano; não é isso, Henriqueta?
Henriqueta — E não se… Vende!
Eduardo — Que dizes? Compreendo!
Henriqueta — Não, Eduardo, não compreenda, não procure compreender! Foi uma idéia louca que me passou pelo espírito; não sei nada!… Uma filha pode acusar seu pai?
Eduardo — Não; mas pode confiar a um amigo uma queixa de outro amigo.
Henriqueta — Pois bem, eu lhe digo. Meu pai deve a esse homem, e julgou que não podia recusar-lhe a minha mão, apesar das minhas instâncias. Lutei um mês inteiro, Eduardo, mas lutei só; e uma mulher é sempre fraca, sobretudo quando se exige dela um sacrifício!
Eduardo — Tem razão; se lutássemos juntos, talvez…
Henriqueta — Oh! Então eu defenderia a nossa felicidade; mas lutar para conservar apenas uma triste esperança!

CENA XVIII
Os mesmos, Vasconcelos, Azevedo, D. Maria

Vasconcelos — Vamos, menina! É tarde.
Henriqueta — Sim, meu pai. (A meia voz) Adeus, Eduardo! Até!…
Eduardo — Até sempre, Henriqueta!
Henriqueta — Carlotinha, meu chapéu?
Carlotinha — Toma! Estás mais contentezinha?
Henriqueta — Maliciosa!… (Sobem)
Azevedo — Meu sogro, dispensa-me acompanhá-lo? Um homem não deve andar agarrado à sua foice. É mauvais gente.
Henriqueta — Não se incomode. D. Maria, boa noite! Doutor… (Sobem) Eduardo — Uma palavra, Azevedo.
Azevedo — Às tuas ordena.
Eduardo — Quanto te deve o Sr. Vasconcelos?
Azevedo — Uma bagatela! Dez contos de réis!
— Ah!
Azevedo — Por que perguntas?
Eduardo — Porque desejava saber quanto custa uma mulher em primeira mão. Azevedo (rindo). — Vraiment!
Em casa de Eduardo. Sala de visitas.

CENA I
Eduardo, Henriqueta, Carlotinha, Pedro
(Carlotinha na janela; Pedro sacudindo os tapetes)

Carlotinha (baixo, a Pedro) — Não passará ainda hoje?
Pedro — Não sei, nhanhã.
Carlotinha — Está doente?… Zangado comigo?… Por quê?
Pedro — Não se importe mais com ele! Há tanto moço bonito! Sr. Azevedo… (Pedro vai colocar o tapete e sai)

CENA II
Eduardo, Henriqueta, Carlotinha

Eduardo — Quando eu lhe digo que espere, Henriqueta, é porque estou convencido de que há um meio de desfazer esse casamento sem a menor humilhação para seu pai.
Henriqueta — E esse meio qual é?
Eduardo — Não lhe posso dizer; é meu segredo.
Henriqueta — Ah! Tem segredos para mim?
Eduardo — É injusta fazendo-me essa exprobração, Henriqueta. Se não lhe falo francamente, é porque não desejo que partilhe, ainda mesmo em pensamento, os desgostos, as contrariedades que eu há um mês tenho sofrido para conseguir esse meio de que lhe falei.
Henriqueta — Mas, Eduardo, uma parte dessas contrariedades me pertence, e por dois títulos; porque se trata de mim, e porque nos… Estimamos!
Eduardo — Porque nos amamos: é verdade! Mas nessa partilha igual que fazem duas almas da sua dor e do seu prazer, há a diferença das forças. À mulher cabe a parte do consolo, ou da ternura; ao homem, a parte da coragem e do trabalho. Henriqueta — Então eu não tenho o direito de fazer também alguma coisa para a nossa felicidade?
Eduardo — Não disse isto! Faz muito!
Henriqueta — Como? Se toma para si tudo e não me quer deixar nem mesmo a metade dos cuidados?
Eduardo — E quem me dá força para prosseguir e a fé para trabalhar? Não são esses momentos que todos os dias passamos juntos aqui ou em sua casa?
Henriqueta — Assim, não me quer dizer qual é essa esperança?
Eduardo — Não desejo afligi-la com idéias mesquinhas. Os homens inventaram certas coisas, como os algarismos, o dinheiro e o cálculo, que não devem preocupar o espírito das senhoras.
Henriqueta — Porque somos nós tão fracas de inteligência?…
— Não é por isso; é porque tiram-lhes o perfume e a poesia.

Henriqueta — Isso é muito bonito, mas não me diz o que desejo saber.
Eduardo — O quê?
Henriqueta — O meio por que há de fazer o meu casamento.
Eduardo — Ainda insiste; pois bem, hoje mesmo lhe direi.
Henriqueta — Sim?
Eduardo — Talvez daqui a uma hora.
Carlotinha — Mano, aí entrou uma pessoa, que julgo procurar por você. Eduardo — Há de ser naturalmente o negociante que espero.

CENA III
Os mesmos, Pedro

Pedro — Está ai o homem que escreveu aquela carta; quer falar ao senhor.
Eduardo — Manda-o entrar para o meu gabinete.
Pedro (baixo, a Carlotinha) — Nhanhã Carlotinha está triste!… Hi!…
Eduardo — Até logo, Henriqueta. Henriqueta — Já! Que vai fazer?
Eduardo — Concluir um pequeno negócio; ao mesmo tempo realizar um pensamento que me foi inspirado pelo nosso amor.
Henriqueta — Como?
Eduardo — Quero solenizar a nossa felicidade, Henriqueta, exercendo um dos mais belos direitos que tem o homem na nossa sociedade.
Henriqueta — Qual?
Eduardo — O direito de dar a liberdade!
Henriqueta — Não entendo.
Eduardo — Dir-lhe-ei tudo logo.
Henriqueta — Volte, Sim?
Eduardo — Demorar-me-ei apenas o tempo de assinar um papel e escrever algumas linhas.

 

 

 

 

Penúltimo Capítulo.

A peste em família.

Continuação de cena.

Uma historia de Marcelo Jr M. E Silva

CENA IV
Henriqueta, Carlotinha

Henriqueta — Sabes, Carlotinha, tenho uma queixa de ti.
Carlotinha — De mim? Que te fiz eu, má?
Henriqueta — Há um mês espero que tu me contes uma coisa, e ainda não me disseste uma palavra.
Carlotinha — De quê? Não sei.
Henriqueta — Do teu segredo; não te confiei o meu?
Carlotinha — Ah! Quem te disse?
Henriqueta — Eduardo.
Carlotinha — Não acredites, ele estava gracejando.
Henriqueta — Não, tu amas, Carlotinha, e nunca me falas dos teus sonhos, de tuas esperanças. Não sou eu mais tua amiga?
Carlotinha — Pois duvidas?
Henriqueta — Se fosses, não me ocultarias o que sentes.
Carlotinha — Não te zangues; eu te contarei tudo, mas custa tanto falar dessas coisas!
Henriqueta — Com aqueles que nos compreendem é um prazer bem doce.
Carlotinha — Olha, o meu segredo… Porém não sei como hei de começar isto!
Henriqueta — Começa pelo nome. Como ele se chama?
Carlotinha (confusa) — Alfredo.
Henriqueta — Este moço que teu mano nos apresentou?
Carlotinha — Sim. Todas as manhãs, faça bom ou mau tempo, passa por aqui ao meio-dia; quase nem olha para esta janela, donde eu o espero escondida entre as cortinas, ninguém nos vê, mas nós nos vemos.
Henriqueta — Depois?
Carlotinha — À noite vem visitar-nos, como tu sabes; todo o tempo conversa com mamãe, ou com mano enquanto tu e eu brincamos no piano. À hora do chá sentamo-nos juntos; ele diz que me viu de manhã, eu respondo que estava distraída e não o vi. Às vezes…
Henriqueta — Acaba, não tenhas vergonha. Eu também amo.
Carlotinha — Pois sim. Às vezes nossas mãos se encontram sem querer; ele fica pálido, e eu corro toda trêmula para junto de ti. Daí a pouco são dez horas, todos se retiram: então chego à janela e sigo-o com os olhos, até que desaparece no fim da rua.
Henriqueta — E é este todo o teu segredo?
Carlotinha — Todo.
Henriqueta — Parece-se com o meu: ver-se de longe, trocar um olhar, amar em silêncio. Há só uma diferença.
Carlotinha — Qual?
Henriqueta — Tu és feliz, porque és livre, enquanto eu…
Carlotinha — Tu és correspondida, Henriqueta; Mano Eduardo te ama!
Henriqueta — E Alfredo, não te ama?
Carlotinha — Não sei, tenho medo; há quatro dias que não o vejo. Levo a contar as horas.
Henriqueta — Donde procede esta mudança? Fizeste-lhe alguma coisa?
Carlotinha — Eu?… Se procuro adivinhar os seus pensamentos!
Henriqueta — Entretanto, deve haver um motivo…
Carlotinha — Tenho querido me recordar, e só acho este. No domingo veio passar a manhã aqui; eu o deixei um momento para te escrever e voltei logo. Quando chamei Pedro para levar-te a carta; ele levantou-se de repente, despediu-se de mamãe, cumprimentou-me friamente, e desde então não o tenho visto. Ficou zangado comigo por ter saído um momento de junto dele.
Henriqueta — Não faças caso, isso passa. Hoje mesmo ele virá arrependido pedirte perdão. Mas, a propósito da carta que me escreveste domingo, eu trouxe-a mesmo para brigar contigo, travessa! (Tira a carta) Carlotinha — Por quê? Pela sobrescrita?
Henriqueta — Essa é uma das razões. Para que escreveste “Madame Azevedo?” Não sabes que essa idéia me mortifica? Carlotinha — Desculpa, foi um gracejo.
Henriqueta — Além disso, não tinhas outra pessoa por quem mandar a carta, senão ele?
Carlotinha — Ele quem? O Azevedo?
Henriqueta — Sim; foi ele que ma entregou.
Carlotinha — Mas não é possível; eu a mandei por Pedro; e recomendei-lhe que não a mostrasse a ninguém, mesmo por causa da sobrescrita!…
Henriqueta — Não compreendo, então, como foi parar nas mãos desse homem.
Tive um desgosto… E um medo!… Tu falavas de Eduardo!
Carlotinha — Espera, vou perguntar a Pedro que quer dizer isto! (Na porta) Pedro!… Henriqueta — Deixa, não vale a pena. Carlotinha — Não, é muito mal feito.

CENA V
Os mesmos e Pedro

Pedro — Nhanhã chamou?
Carlotinha — Quero saber como é que a carta que eu lhe dei para Henriqueta foi parar em mão do Sr. Azevedo.
Pedro — Ele me encontrou na rua, e tomou para entregar.
Carlotinha — Não te disse que não queria que ninguém visse a sobrescrita?
Pedro — Ele é noivo de sinhá Henriqueta: não faz mal.
Henriqueta — Está bom; não pensemos mais nisto.
Carlotinha — Não quero que outra vez suceda o mesmo. (A Pedro) Entendeste? Pedro — Sim, nhanhã. Pedro sabe o que faz! (Batem palmas) Carlotinha — Que quer dizer?

CENA VI
Henriqueta, Carlotinha, Azevedo, Pedro, no fundo

Henriqueta, — Há de ser ele.
Carlotinha — Alfredo! Ah! Se fosse…
Henriqueta — Queres apostar?
Carlotinha — Ora, é o Azevedo. Eu logo vi!
Azevedo — Como passou, D. Carlotinha? D. Henriqueta?
Carlotinha — O senhor parece que adivinha, Sr. Azevedo?
Azevedo — Por quê?! Por encontrá-la hoje tão bela? Está realmente éblouissante! Carlotinha — Faça-se de esquerdo! A minha beleza serve de pretexto para elogiar a de Henriqueta!
Azevedo — A senhora quer dizer o contrário… Carlotinha — Quer dizer que o senhor adivinhou quem estava aqui hoje.
Azevedo — Quem?… Não vejo ninguém. Carlotinha — Nem a sua noiva? Era esta palavra que o senhor queria ouvir!
Azevedo — Sim, era esta palavra que eu desejava ouvir dos seus lábios.
Carlotinha (baixo, a Henriqueta) — Que fátuo! (Alto) Vem, Henriqueta; vamos chamar mamãe para falar ao Sr. Azevedo.
Azevedo — Então, deixa-me só?
Henriqueta — Oh! Um homem como o senhor pode ficar só? Paris inteira lhe fará companhia!
Carlotinha — Suponha que está no Boulevard dos Italianos.
Azevedo — Não. Mas conversarei com esta flor; ela me dirá em perfumes, o que os lábios que a bafejaram recusaram dizer em palavras.
Carlotinha — Como está poético! Aquilo é contigo, Henriqueta.
Henriqueta — Comigo, não! É com quem lhe mandou a violeta! Vamos! Pois, Sr. Azevedo, nós o deixamos no seu colóquio amoroso.

CENA VII
Azevedo, Pedro

Azevedo — Foge-me!…
Pedro — Como vai paixão por nhanhã Carlotinha, Sr. Azevedo? Flor já está na dança! Azevedo — Queria mesmo te falar a este respeito! Não entendo tua senhora. Tu dizes que ela gosta de mim et pourtant…
Pedro — Parlez-vous français, monsieur?
Azevedo — Ela faz que não me compreende! Trata-me com indiferença.
Pedro — Pudera não! O senhor vai se casar.
Azevedo — Ah! Tu pensas que é esta a razão!
Pedro — Nhanhã mesmo me disse! Moça solteira não pode receber corte de homem que é noivo de outra mulher! É feio, e faz cócega dentro de coração; cócega que se chama ciúme!
Azevedo — Então é o meu casamento que impede!… E nem me lembrava de semelhante coisa! Com efeito, Henriqueta é sua amiga; ela julga talvez que a amo. Pedro — Mas isto não quer dizer nada. Ela gosta de V.Mce., gosta muito! Ontem, quando mandou essa violeta que o senhor tem na casaca, beijou primeiro.
Azevedo — E foi ela mesmo quem se lembrou de mandar-me?
Pedro — Ela mesma, sem que eu pedisse nada!
Azevedo — Bem; eu sei o que me resta a fazer.
Pedro — Já vai? Não espera por sinhá velha?
Azevedo — Não, eu já volto. E, preciso tomar uma resolução: il le faut!
Pedro — Monsieur está pensando!
Azevedo — Diz a D. Carlotinha… Não, não lhe digas nada! Eu quero ser o primeiro a anunciar-lhe.

CENA VIII
Pedro, Jorge

Pedro — Oh! Já voltou do colégio? Agora mesmo deu meio-dia.
Jorge — Tive licença para sair mais cedo.
Pedro — Nhonhô já sabe novidade?
Jorge — Que novidade?
Pedro — Novidade grande! Sr. moço Eduardo vai casar com nhanhã Henriqueta!
Jorge — Ah!… E o noivo dela?
Pedro — Sr. Azevedo? Casa com nhanhã Carlotinha.
Jorge — Mana?… E Sr. Alfredo?
Pedro — Fica logrado. Para rematar a festa, velho Vasconcelos casa com sinhá velha.
Jorge — É mentira!
Pedro — Há de ver!
Jorge — Então tudo se casa?
Pedro — Tudo, tudo. Nhonhô também carece ver uma meninazinha bonita… Mas V.Mce. ainda não sabe namorar!…
Jorge — Eu não!
Pedro — Pois precisa aprender, que já está franguinho. Pedro ensina.
Jorge — E tu sabes?
Pedro (rindo-se) — Ora!… Nhonhô pede dinheiro a mamãe e compra luneta.
Jorge — Para quê?
Pedro — Sem isto não se namora. Quando nhonhô tiver luneta, prende no canto do olho, e deita para a moça. Ela começa logo a se remexer e a ficar cor de pimentinha malagueta. Então rapaz fino volta as costas, assim como quem não faz caso; e moça só espiando ele. Dai a pouco, fogo, luneta segunda vez; ela volta a cara para o outro lado, mas está vendo tudo! Nhonhô deixa passar um momento, fogo, luneta terceira vez; ai moça não resiste mais, cai por força, com o olho requebrado só, namoro está ferrado. Rapaz torce o bigodinho… Mas V. Mce. não tem bigode!…
Jorge — Olha! Não tarda nascer!
Pedro — Qual! Está liso como um frasco!
Jorge (ouvindo entrar) — Quem é?
Pedro — Velho tabaquista!
Jorge — Que vai casar com mamãe.
Pedro — Psiu! Não diga nada, não!

CENA IX
Pedro, Vasconcelos, Jorge

Vasconcelos — Onde está esta gente! Henriqueta fica para jantar?
Pedro — Sim, senhor; nhanhã Carlotinha não quer deixar ela ir.
Jorge (saindo) — Eu vou chamá-la!
Vasconcelos — Não precisa. (A Pedro) Dize-lhe que à tarde virei buscá-la.
Pedro — V.Mce. vai para casa?
Vasconcelos — Não; por que perguntas?
Pedro — Porque Sr. Azevedo saiu daqui agora mesmo para ir falar a V.Mce.
Vasconcelos — Sobre quê? Alguma coisa de novo?
Pedro — Negócio importante. Pedro não sabe; mas ele parecia zangado.
Vasconcelos — Ora, que me importam as suas zangas.
Pedro — Senhor não deve mesmo se importar; esse Sr. Azevedo tem uma língua…
Sabe o que ele disse?
Vasconcelos — Não quero saber.
Pedro — Disse a Sr. moço Eduardo, a casa estava cheia de gente, disse que Sr.
Vasconcelos é um… Nome muito ruim!
Vasconcelos — Um que, moleque?
Pedro — Um pinga!
Vasconcelos — Hein!… Não é possível!
Pedro — Ora! Aquele moço não tem respeito a senhor velho. (Faz uma careta) Vasconcelos — Pois hei de ensinar-lhe a ter.
Pedro — Precisa mesmo, para não andar enchendo a boca de que comprou filha de senhor com seu dinheiro dele.
Vasconcelos — Comprou minha filha! Ah, miserável! (Batem palmas) Pedro — Pode entrar.

Último Capítulo.

A peste em família.

Continuação de cena.

Uma historia de Marcelo Jr M. E Silva

 

CENA X
Os mesmos e Alfredo

Pedro (a Alfredo) — V.Mce. espere, vou chamar Sr. moço Eduardo.
Alfredo — Sim, dize-lhe que desejo falar-lhe com instância.
Vasconcelos (a Pedro) — Há muito tempo que ele saiu?
Pedro — Sr. Azevedo?… Agora mesmo.
Vasconcelos — Vou à sua procura. Preciso de uma explicação.

CENA XI
Pedro, Alfredo

Pedro — O velho vai deitando azeite às canadas! Noivo da filha virou de rumo e agora só quer casar com nhanhã Carlotinha.
Alfredo — Oh! Ele pode desejar todas as mulheres, é rico!
Pedro — Não sei também; essas moças… Têm cabecinha de vento; um dia gostam de um, outro dia gostam de outro. Nhanhã, que esperava todo o dia para ver Sr.
Alfredo passar, nem se lembra mais; escreveu aquela carta a Sr. Azevedo!
Alfredo — Se não fosse essa carta, eu ainda duvidava!…
Pedro — V.Mce. bem viu, no domingo, ela me dar à sua vista, e eu entregar na rua a ele, a Sr. Azevedo.
Alfredo — Sim; e foi preciso ver seu nome escrito!… Quem diria que tanta inocência e tanta timidez eram o disfarce de uma alma pervertida! Meu Deus! Onde se encontrará nestes tempos a inocência, se no seio de uma família honesta ela murcha e não vinga!
Pedro — Ora, Sr. Alfredo, tem tanta moça bonita! Pode escolher! Alfredo — Vai prevenir a Eduardo!

CENA XII
Os mesmos, Carlotinha, Henriqueta

Carlotinha — Ah! Ele está aí!…
Henriqueta — Não te disse? Já volto.
Carlotinha — Queres deixar-me só com ele! Não, eu te peço.
Pedro (a Alfredo) — Nhanhã! Como ela está alegre!
Alfredo — É por ele! (Cumprimenta)
Carlotinha (a Henriqueta) — Nem me fala! Que ar sério!
Henriqueta — É, talvez, por minha causa.
Carlotinha — Não, fica.
Pedro (a Carlotinha) — Agora é que nhanhã deve ensiná-lo; e não fazer caso dele!
(Sai)
Carlotinha (a Henriqueta) — Nem me olha!
Henriqueta — Com efeito, ele tem alguma coisa que o mortifica.
Carlotinha — Se eu lhe falasse!…
Henriqueta — É verdade, dize-lhe uma palavra.
Carlotinha — Oh! Não tenho ânimo!
Henriqueta (a Carlotinha) — Espera, com ele eu sou mais animosa do que tu. Vou falar-lhe.
Carlotinha — Mas não lhe digas nada a meu respeito.
Henriqueta — Não. Então, Sr. Alfredo, tem ido estas noites ao teatro?
Alfredo — É verdade, minha senhora, para distrair-me.
Carlotinha (a Henriqueta) — Distrair-se… De pensar em mim!
Henriqueta — O teatro é mais divertido do que as nossas noites, aqui em casa de Carlotinha ou na minha. Não é verdade?
Alfredo — Não, minha senhora, mas no teatro se está no meio de indiferentes, e, portanto, não há receio de que se incomode com a sua presença àquelas pessoas que se estima.
Carlotinha (a Henriqueta) — Com que ar diz ele isto! Tu compreendes?
Henriqueta — Mas, Sr. Alfredo, me parece que isto não se refere a nós, que nunca demos demonstrações…
Alfredo — A senhora, não, D. Henriqueta.
Carlotinha — É a mim, então… (Silêncio de Alfredo)
Henriqueta — Mas explique-se, Sr. Alfredo; eu creio que há nisto algum equívoco.
Alfredo — Há certas coisas que se sentem, D. Henriqueta, mas que não se dizem. Quando nos habituamos a venerar um objeto por muito tempo podemos odiá-lo um dia, porém o respeitamos sempre!
Carlotinha — Mas ninguém tem direito de condenar sem ouvir aqueles a quem acusa.
Henriqueta — Decerto; muitas vezes uma palavra mal interpretada…
Eduardo — Tem certeza disso?
Alfredo — Tenho convicção profunda.
Eduardo — Pode ser uma convicção falsa.
Alfredo — Não me obrigue a apresentar-lhe as provas.
Eduardo — São essas provas que eu peço! Tenho direito a elas…
Alfredo — Por quê? Não ofendem o caráter de D. Carlotinha.
Eduardo — Mas revelam seus sentimentos, que eu devo conhecer como seu irmão.

CENA XIV
Os mesmos, Carlotinha, Henriqueta

Carlotinha — E que eu exijo que se patenteiem, porque não me envergonham, Eduardo!
Eduardo — Tu nos ouvias, Carlotinha!
Carlotinha — Sim, mano. Tratava-se de mim; fiz mal?
Eduardo — Não, minha irmã, eu mesmo te chamaria se não quisesse poupar-te um pequeno desgosto. Mas já que aqui estás, fica. Alfredo parece que tem algumas queixas de nós; julgarás se ele é injusto.
Henriqueta (à meia voz, a Eduardo) — Ele está iludido! Carlotinha o ama!
Eduardo — Eu sabia! (Continuam a conversar)
Carlotinha — O Sr. Alfredo diz que tem provas de que amo outro homem… Reclamo essas provas.
Alfredo — Não é possível, D. Carlotinha! Na minha boca seriam uma exprobração ridícula e ofensiva. Guardo-as comigo e respeito os sentimentos que não soube inspirar.
Carlotinha — O senhor não mas quer dar?… Pois bem, serei eu que provarei o contrário!… Eis a prova… (Estendendo-lhe a mão)
Alfredo — Ah!… (Tomando a mão) Mas essa mão não pode ser minha!
Carlotinha — Por quê?
Alfredo — Porque escreveu a outro e lhe pertence!
Carlotinha — Meu Deus! Mano, Henriqueta!…
Eduardo — Que tens?
Carlotinha — Ele diz que eu amo a outro, que lhe escrevi!… Quando a ele…
Alfredo — Não devia dizê-lo; mas foi o amor ofendido, e não a razão, que falou. Eduardo — Sei que é incapaz de tornar-se eco de uma calúnia; para dizer o que acabo de ouvir é preciso que tenha certeza do que afirma. A quem escreveu minha irmã, Alfredo?
Alfredo — Perdão!… Não devo!
Eduardo — Exijo!…
Alfredo — Ao Sr. Azevedo!
Henriqueta — E impossível!
Carlotinha — Ele acredita!
Eduardo — O senhor viu essa carta?
Alfredo — Vi essa carta sair da mão que a escreveu e ser entregue àquele a quem era destinada! (Rumor de passos) Eduardo — Silêncio senhor!

CENA XV
Os mesmos, Azevedo

Azevedo (a Eduardo) — Cher ami! (A meia voz) Acabo de ter uma cena bastante animada, échauffante mesmo!
Eduardo — Por que motivo?
Azevedo — Eu lhe digo. (Afastam-se) Rompi o meu casamento com Henriqueta; e acabo de participá-lo ao Sr. Vasconcelos.
Eduardo — Ah!… E que razão teve para proceder assim?
Azevedo — Muitas; seria longo enumerá-las. Aquele velho é um miserável e sua filha uma namoradeira!…
Eduardo — Sr. Azevedo, esquece que fala de amigos de nossa casa.
Azevedo — Perdão, mas não podia deixar que esses dois especuladores abusassem por mais tempo da minha boa fé.
Eduardo — Se continua desta maneira, sou obrigado a pedir-lhe que se cale.
Azevedo — Bom; não me leve a mal este desabafo. O fato é ue o casamento está completamente desfeito, e que eu posso dizer como Francisco I: – Tout est perdu, hors l’honneur.
Eduardo — E a dívida de dez contos?
Azevedo — Ele a pagará; não lhe deixarei um momento de sossego! Permita que cumprimente sua irmã.
Alfredo — Não devo ficar, Eduardo, sinto que não terei é sangue frio necessário para dominar-me.
Eduardo — Espere, meu amigo.
Carlotinha — Sim, eu lhe peço, fique.
Alfredo — Para quê? Para ser testemunha…
Carlotinha — Para ser testemunha de minha inocência!
Henriqueta — Que vais fazer?
Carlotinha — Apelar para a consciência de um homem que eu julgo honesto.
Eduardo — Minha irmã! Deixa-me esse penoso dever! Tu és uma moça…
Carlotinha — Não, Eduardo, para ele eu sou criminosa. É justo que me defenda.
Azevedo — Estou completamente embêté!
Carlotinha — Sr. Azevedo, peço-lhe que declare se algum dia recebeu uma carta minha!
Azevedo — Comment!… Uma carta sua!… Nunca!…
Alfredo (a meia voz) — O senhor mente!
Carlotinha (a Henriqueta) — Ainda duvida!
Azevedo (a Eduardo) — Não estou na casa de um amigo?
Eduardo — Sim; e o insulto é feito a mim!
Alfredo — Perdão, Eduardo! Não sei o que faço, o meu espírito se perde!
Azevedo — Falta-lhe o savoir vivre!
Carlotinha — Assim o senhor dá sua palavra de honra! Não recebeu essa carta?… Azevedo — Se eu a tivesse recebido, há muito teria vindo apresentar-lhe o pedido respeitoso de um amor profundo; e não esperaria por esse momento.
Carlotinha — senhor ama-me então?
Azevedo — É verdade!
Carlotinha — Pois eu… Eu o desprezo!
Azevedo — Ah!
Eduardo — Minha irmã!…
Azevedo — O desprezo é o direito das senhoras e dos soberanos.
Henriqueta — Mas, então, eu sou livre? A minha promessa…
Azevedo — Já foi restituída a seu pai!
Henriqueta — Obrigada, meu Deus!

CENA XVI
Os mesmos, D. Maria

D. Maria — Que se passa aqui, senhores?
Eduardo — Ah! Minha mãe! A nossa casa está sendo o teatro de uma cena bem triste!
D. Maria — Mas por quê? Aconteceu alguma coisa? Carlotinha, que tens? Carlotinha — Nada, mamãe.
D. Maria — Todos tão frios, tão reservados!… Que quer dizer isto, Eduardo?

CENA XVII
Os mesmos, Vasconcelos, Pedro

Pedro — Barulho grande, Sr. Vasconcelos!
Vasconcelos — Deixe-me! Estou furioso!
Henriqueta — Meu pai, é verdade?
D. Maria — O senhor está tão perturbado!
Vasconcelos — Se a senhora soubesse o que acabo de ouvir! Os maiores insultos!
Azevedo — Verdades bem duras, mas não insultos, senhor! Não é meu costume.
Vasconcelos — Ah! O senhor está aqui?
Eduardo — Sr. Vasconcelos!…
Vasconcelos — Oh! Não faz idéia do que este homem disse de mim. E se fosse só de mim! Caluniou, injuriou atrozmente a minha filha!…
Eduardo — Como, Sr. Azevedo?
Azevedo — Pergunte-lhe o que ouvi dele!
Pedro (a Alfredo) — Intriga está fervendo só! Hoje sim! Acaba-se tudo!
Vasconcelos — E o que me dói, ainda mais, D. Maria, é que todas essas injúrias de que o senhor se fez eco, saem de sua casa!
Pedro (a Carlotinha) — Mentira!
Eduardo — De nossa casa, Sr. Vasconcelos?
Henriqueta — Eu não creio, meu amigo.
Vasconcelos — Tu não crês, porque não as ouviste, minha filha; senão havias de ver que só amigos fingidos pediam servir-se da intimidade para, à sombra dela, urdirem semelhantes calúnias!
D. Maria — Nunca pensei, meu Deus, passar por semelhante vergonha!…
Eduardo — E eu, minha mãe, eu que sou responsável por todos esses escândalos! Azevedo — C’est ennuyeux, ça!
Vasconcelos — Vamos, minha filha, deixemos para sempre esta casa onde nunca devíamos ter entrado!
Henriqueta — Eduardo!…
Eduardo — Adeus, Henriqueta!
Henriqueta — Carlotinha!…
Carlotinha — Ama-me! Tu ao menos não Me farás chorar!
Alfredo — Sou eu que a faço chorar, D. Carlotinha?
Vasconcelos — Vem, vem, Henriqueta! Não estamos bem neste lugar!
Alfredo — É verdade, sofre-se muito aqui.
Azevedo — Com efeito, li fait chaud.
Eduardo — A honra e a felicidade! Tudo perdido! D. Maria (chorando) — E tua mãe, meu filho!
Pedro — E Pedro, senhor!
Vasconcelos — Oh! Está quem podia confirmar o que eu disse.
Azevedo — Justamente!
Eduardo — Ah!… Escutem-me, senhores; depois me julgarão.. É a nossa sociedade brasileira a causa única de tudo quanto se acaba de passar.
Alfredo — Como?
Vasconcelos — Que quer dizer?
Azevedo — Tem razão, começo a entender!
Eduardo — Os antigos acreditavam que toda a casa era habitada por um demônio familiar, do qual dependia o sossego e á tranqüilidade das pessoas que nela viviam Nós, os brasileiros, realizamos infelizmente esta crença; temos no nosso lar doméstico esse demônio familiar. Quantas vezes não partilha conosco as carícias de nossas mães, os folguedos de nossos irmãos e uma parte das atenções da família! Mas vem um dia, como hoje, em que ele na sua ignorância ou na sua malícia, perturba a paz doméstica; e faz do amor, da amizade, da reputação, de todos esses objetos santos, um jogo de criança. Este demônio familiar de nossas casas, que todos conhecemos, ei-lo.
Azevedo — É uma grande verdade.
Vasconcelos — Tem toda a razão; a ele é que ouvi!
Alfredo — Sim, não há dúvida. Carlotinha — Eu adivinhava!… D. Maria — Como? Foste tu?
Pedro — Pedro confessa, sim senhora. D. Maria — Mas para quê?…
Pedro — Para desmanchar o casamento de Sr. Azevedo.
Azevedo — Que tal!
Vasconcelos — E para isso inventaste tudo o que me disseste?
Pedro — E o que disse a Sr. Azevedo. Nhanhá Carlotinha nunca se importou com ele.
Azevedo — Assim, a flor?…
Pedro — Mentira tudo.
Alfredo — E a carta?
Pedro — Nhanhá mandava a sinhá Henriqueta.
Henriqueta — Então é esta!
Alfredo — Mas a sobrescrita?
Henriqueta — Uma brincadeira!
Alfredo — Perdão, D. Carlotinha!
Carlotinha — Não! O que eu sofri!…
Eduardo — Por que, minha irmã? Todos devemos perdoar-nos mutuamente; todos somos culpados por havermos acreditado ou consentido no fato primeiro, que é a causa de tudo isto. O único inocente é aquele que não tem imputação, e que fez apenas uma travessura de criança, levado pelo instinto da amizade. Eu o corrijo, fazendo do autômato um homem; restituo-o à sociedade, porém expulso-o do seio de minha família e fecho-lhe para sempre a porta de minha casa. (A Pedro) Toma: é a tua carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje em diante, porque as tuas faltas recairão unicamente sobre ti; porque a moral e a lei te pedirão uma conta severa de tuas ações. Livre, sentirás a necessidade do trabalho honesto e apreciarás os nobres
sentimentos que hoje não compreendes. (Pedro beija-lhe a mão) D. Maria — Muito bem, meu filho! Adivinhaste o meu pensamento!
Azevedo — Mas agora, por simples curiosidade, diz-me, gamin, que interesse tinhas em desfazer o meu casamento?
Pedro — Sr. moço Eduardo gosta de sinhá Henriqueta!
Azevedo — Ah!… Bah!…
Eduardo — Sim, meu amigo. Eu amo Henriqueta e para mim esse casamento seria uma desgraça; para o senhor era uma pequena questão de gosto e para seu pai um compromisso de honra. Hoje mesmo pretendia solver essa obrigação. Aqui está uma ordem sobre o Souto; o Sr. Vasconcelos nada lhe deve.
Vasconcelos — Como? Fico então seu devedor?
Eduardo — Essa dívida é o dote de sua filha.
Henriqueta — Oh! Que nobre coração!
Eduardo — Quem mo deu?
Henriqueta — Sou eu que sinto orgulho em lhe pertencer, Eduardo.
D. Maria — Mas, meu filho, dispões assim da tua pequena fortuna. O que te resta?
Eduardo — Minha mãe, uma esposa e uma irmã. A pobreza, o trabalho e a felicidade.
Alfredo — Esqueceu um irmão, Eduardo.
Eduardo — Tem razão!
Azevedo — E um amigo quand même!
Eduardo — Obrigado!
Vasconcelos — A vista disto, D. Maria, vou tratar de pôr a Josefa nos cobres!
Azevedo — Decididamente volto a Paris, meus senhores!
Pedro — Pedro vai ser cocheiro em casa de Major!
Eduardo — E agora, meus amigos, façamos votos para que o demônio familiar das nossas casas desapareça um dia, deixando o nosso lar doméstico protegido por Deus e por esses anjos tutelares que, sob as formas de mães, de esposas e de irmãs, velarão sobre a felicidade de nossos filhos!…

FIM

 

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