A Peste em Família

A Peste em Família – Capítulo 03.

Capitulo 003.

A Peste em Família
Uma historia de Marcelo Jr M. E Silva


CENA XII
Pedro, Eduardo e Azevedo

Eduardo — Onde vai?
Pedro — Ia abrir a porta a meu senhor!
Eduardo (para a escada) — Entra, Azevedo! Eis aqui o meu aposento de rapaz solteiro; uma sala e uma alcova. É pequeno, porém basta-me!
Azevedo — É um excelente appartement! Magnífico para um garçon… Este é o teu valet de chambre?
Eduardo — É verdade; um vadio de conta!
Pedro (a Azevedo, em meia voz) — Hô… Senhor está descompondo Pedro na língua francesa.
Eduardo — Deste lado é o interior da casa; aqui tenho janelas para um pequeno jardim e uma bela vista. Vivo completamente independente da família. Tenho esta entrada separada. Por isso podes vir conversar quando quiseres, sem a menor cerimônia; estaremos em perfeita liberdade escolástica.
Azevedo — Obrigado, hei de aparecer. Ah! tens as tuas paisagens signées Lacroix?
Mas não são legítimas; vi-as em Paris chez Goupil; fazem uma diferença enorme.
Eduardo — Não há dúvida; mas não as comprei pelo nome, achei-as bonitas. Queres fumar?
Azevedo — Aceito. Esqueci o meu porte-cigarres. São excelentes os teus charutos.
Onde os compras? No Desmarais?
Eduardo — Onde os encontro melhores. (Pedro acende uma vela)
Pedro (baixo) — Rapaz muito desfrutável, Sr. moço! Parece cabeleireiro da Rua do Ouvidor!
Eduardo — Cala-te!
Azevedo (acende o charuto) — Obrigado!… Eis o que se chama em Paris – parfumer la causerie!

CENA XIII
Eduardo, Azevedo

Eduardo — Com que então, vais te casar? Ora quem diria que aquele Azevedo, que eu conheci tão volúvel, tão apologista do celibato…
Azevedo — E ainda sou, meu amigo; dou-te de conselho que não te cases. O celibato é o verdadeiro estado!… Lembra-te que Cristo foi garçon!
Eduardo — Sim; mas as tuas teorias não se conformam com esse exemplo de sublime castidade!
Azevedo — Considera, meu caro, a diferença que vai da divindade ao homem.
Eduardo — Mas enfim, sempre te resolveste a casar?
Azevedo — Certas razões!
Eduardo — Uma paixão?
Azevedo — Qual! Sabes que sou incapaz de amar o quer que seja. Algum tempo quis convencer-me que o meu eu amava a minha bête, que era egoísta, mas desenganei-me. Faço tão pouco caso de mim, como do resto da raça humana.
Eduardo — Assim, não amas a tua noiva?
Azevedo — Não, decerto.
Eduardo — É rica, talvez; casas por conveniências?
Azevedo — Ora, meu amigo, um moço de trinta anos, que tem, como eu, uma fortuna independente, não precisa tentar a chasse au mariage. Com trezentos contos pode-se viver.
Eduardo — E viver brilhantemente; porém não compreendo então o motivo…
Azevedo — Eu te digo! Estou completamente blasé, estou gasto para essa vida de flaneur dos salões; Paris me saciou. Mabille e Chôteau des Fleurs embriagaram-me tantas vezes de prazer que me deixaram insensível. O amor hoje é para mim um copo de Cliqcot que espuma no cálice, mas já não me tolda o espírito!
Eduardo — E esperaste chegar a este estado para te casares?
Azevedo — Justamente. Tiro disso duas conveniências: a primeira é que um marido como eu está preparado para desempenhar perfeitamente o seu grave papel de carregador do mantelete, do leque ou do binóculo, e de apresentador dos apaixonados de sua mulher.
Eduardo — Com efeito! Admiro o sangue frio com que descreves a perspectiva do teu casamento.
Azevedo — Chacun son tour, Eduardo, nada mais justo. A segunda conveniência, e a principal, é que, rico, independente, com alguma inteligência, quanto basta para esperdiçar em uma conversa banal, resolvi entrar na carreira pública.
Eduardo — Seriamente?
Azevedo — Já dei os primeiros passos; pretendo a diplomacia ou a administração.
Eduardo — E para isso precisa casar?
Azevedo — Decerto!… Uma mulher é indispensável, e uma mulher bonita!… É o meio pelo qual um homem se distingue no grand monde!… Um círculo de adoradores cerca imediatamente a senhora elegante, espirituosa, que fez a sua aparição nos salões de uma maneira deslumbrante! Os elogios, a admiração, a consideração social acompanharão na sua ascensão esse astro luminoso, cuja cauda é uma crinolina, e cujo brilho vem da casa do Valais ou da Berat, à custa de alguns contos de réis! Ora, como no matrimônio existe a comunhão de corpo e de bens, os apaixonados da mulher tornam-se amigos do marido, e vice-versa; o triunfo que tem a beleza de uma, lança um reflexo sobre a posição do outro. E assim consegue-se tudo!
Eduardo — Tu gracejas, Azevedo; não é possível que um homem aceite dignamente esse papel. A mulher não é, nem deve ser, um objeto de ostentação que se traga como um alfinete de brilhante ou uma jóia qualquer para chamar a atenção!
Azevedo — Bravo! Fizeste a mais justa das comparações, meu amigo! Disseste com muito espírito; a mulher é uma jóia, um traste de luxo… E nada mais!
Eduardo — Ora, não acredito que fales seriamente!
Azevedo — Podes não acreditar, mas isso não impede que a realidade seja essa. Estás ainda muito poeta, meu Eduardo! Vai a Paris e volta! Eu fui criança no espírito e voltei com a razão de um velho de oitenta anos!
Eduardo — Mas com o coração pervertido!… Ouve, Azevedo. Estou convencido que há um grande erro na maneira de viver atualmente. A sociedade, isto é, a vida exterior, tem-se desenvolvido tanto que ameaça destruir a família, isto é, a vida íntima. A mulher, o marido, os filhos, os irmãos, atiram-se nesse turbilhão dos prazeres, passam dos bailes aos teatros, dos jantares às partidas; e quando, nas horas de repouso, se reúnem no interior de suas casas, são como estrangeiros que se encontram um momento sob a tolda do mesmo navio para se separarem logo. Não há ali a doce efusão dos sentimentos, nem o bem-estar do homem que respira numa atmosfera pura e suave. O serão da família desapareceu; são apenas alguns parentes que se juntam por hábito, e que trazem para a vida doméstica, um, o tédio dos prazeres, o outro, as recordações da noite antecedente, o outro, o aborrecimento das vigílias!
Azevedo — E que concluis desta tirada filosófico-sentimental?
Eduardo — Concluo que é por isso que se encontram hoje tantos moços gastos como tu; tantas moças para quem a felicidade consiste em uma quadrilha; tantos maridos que correm atrás de uma sombra chamada consideração; e tantos pais iludidos que se arruinam para satisfazer o capricho de suas filhas julgando que é esse o meio de dar-lhes a ventura!
Azevedo — Realmente estás excêntrico. Onde é que aprendeste estas teorias? Eduardo — Na experiência. Também fui atraído, também fui levado pela imaginação que me dourava esses prazeres efêmeros, e conheci que só havia neles de real uma coisa.
Azevedo — O quê?
Eduardo — Uma lição; uma boa e útil lição. Ensinaram-me a estimar aquilo que eu antes não sabia apreciar; fizeram-me voltar ao seio da família, à vida íntima! Azevedo — Hás de mudar. (Toma o chapéu e as luvas) Eduardo — Não creio!… Já te vais?
Azevedo — Tenho que fazer. Algumas maçadas de homem que se despede de sua vida de garçon. Janto hoje com minha noiva; amanhã parto para minha fazenda, onde me demorarei alguns dias, e na volta terei o prazer de te anunciar, com todas as formalidades de estilo, em carton porcelaine sob o competente enveloppe satinée et dorée sur tranche, o meu casamento com a Sra. D. Henriqueta de Vasconcelos.
Eduardo — Henriqueta!… Ah! É com ela que te casas?
Azevedo — Sim. De que te admiras?
Eduardo — Julguei que escolhesses melhor! É tão pobre!
Azevedo — Mas é bonita e tem muito espírito. Há de fazer furor quando a Gudin ajeitá-la à parisiense.
Eduardo — Dizem que é muito modesta.
Azevedo — Toda a mulher é vaidosa, Eduardo; a modéstia mesmo é uma espécie de vaidade inventada pela pobreza para seu uso exclusivo.
Eduardo — Assim, estás decidido?
Azevedo — Mais que decidido! Estou noivo já. Adeus, aparece; andas muito raro.

CENA XIV
Eduardo, Pedro

Pedro — O jantar está na mesa.
Eduardo — Não me maces! Vai-te embora.
Pedro — Sr. não vem, então?
Eduardo — Chega aqui. Tu sabias que D. Henriqueta estava para casar?
Pedro — Sabia, sim, senhor; rapariga dela me contou.
Eduardo — E por que não vieste dizer-me?
Pedro — Porque V.Mce. me deu ordem que não falasse mais no nome dela. Eduardo — É verdade.

CENA XV
Os mesmos, Carlotinha

Carlotinha — Demorou-se muito, mano. Eu lhe esperei!… Agora vamos jantar.
Eduardo — Não; não tenho vontade, deixa-me.
Pedro — Sr. moço está triste porque sinhá Henriqueta vai casar!
Eduardo — Moleque!
Carlotinha — Você sabia? Era dela mesmo que eu queria falar-lhe.
Eduardo — Sabia; o seu noivo acaba de sair daqui.
Carlotinha — Um Azevedo, não é?
Eduardo — Sim, um homem que, além de não amá-la, estima-a tanto como as suas botas envernizadas e os seus cavalos do Cabo!
Carlotinha — Mas você não sabe a razão desse casamento?
Eduardo — Sei, Carlotinha. Um amor pobre possui tesouros de sentimentos, mas não é moeda com que se comprem veludos e sedas!
Carlotinha — Oh! Mano, não seja injusto! Ela me contou tudo!
Eduardo — Desejava saber o que te disse.
Carlotinha — Logo depois de jantar, no jardim. Venha, mamãe está nos esperando.

Em casa de Eduardo. Jardim.

CENA I
Eduardo, Carlotinha, D. Maria

Eduardo — Lembras-te do que me prometeste?
Carlotinha — Falar-lhe de Henriqueta?… Lembro-me.
Eduardo — Que te disse ela?
Carlotinha — Muita coisa! Mamãe não nos ouvirá?
Eduardo — Não; podes falar. Estou impaciente!
Carlotinha — Aí vem ela!
D. Maria — Ora, Carlotinha, tu com as tuas flores tens tomado de tal maneira os canteiros que já não posso plantar uma hortaliça.
Carlotinha — Porém, mamãe… É tão bonito a gente ter uma flor, uma rosa para oferecer a uma amiga que nos vem visitar!
D. Maria — É verdade, minha filha; mas não te lembras que também gostas de darlhes uma fruta delicada… Assim os meus morangos estão morrendo, porque as tuas violetas não deixam…
Carlotinha — É a flor da minha paixão! As violetas! Que perfume!
D. Maria — E os meus morangos, que sabor! Não tenho mais um pé de alface ou de chicória…
Eduardo — Não se agonie, minha mãe, eu mandarei fazer uma pequena divisão no quintal. Deste lado Carlotinha terá o seu jardim; do outro V.Mce. mandará preparar a sua horta.
D. Maria — Estimo muito, meu filho! É por vocês que eu tomo este trabalho. Eduardo — E nós não o sabemos? Todo o nosso amor não paga esses pequenos cuidados, essas atenções delicadas de uma mãe que só vive para seus filhos.
D. Maria — O único amor que não pede recompensa, Eduardo, é o amor de mãe; mas se eu a. desejasse, que melhor podia ter do que o orgulho de ver-te em uma bonita posição, admirado pelos teus amigos e estimado mesmo pelos que não te conhecem?
Carlotinha — Não o deite a perder, mamãe; depois fica todo cheio de si!
Eduardo — Por ter uma irmã como tu, não é?
Carlotinha — Não se trata de mim.
D. Maria — Vocês ficam? A tarde está bastante fresca!
Eduardo — Já vamos, minha mãe.

CENA II
Eduardo, Carlotinha

Carlotinha — Ora, enfim! Podemos conversar, mano!
Eduardo — Sim! Estou ansioso por saber o que ela te disse! Com que fim veio verte! Naturalmente foi para dar-me mais uma prova de indiferença, participando-te o seu casamento!
Carlotinha — Foi para vê-lo uma última vez! Ah! Você não se lembra, então, do que se passou! Fala de indiferença? É ela que se queixa da sua frieza, do seu desdém!
Eduardo — Ela queixa-se… E de mim!… Estava zombando?
Carlotinha — Zomba-se com as lágrimas nos olhos e com a voz cortada pelos soluços?
Eduardo — Que dizes? Ela chorava!…
Carlotinha — Sobre o meu seio; e eu não sabia como a consolasse. Eduardo — Não compreendo!
Carlotinha — Por quê?
Eduardo — Eu te direi depois. Conta-me o que ela te disse.
Carlotinha — Foi tanta coisa!… Sim; disse-me que todos os dias lhe via da casa dela, de manhã e à tarde, na janela do seu quarto.
Eduardo — É verdade.
Carlotinha — Mas que uma tarde, vindo aqui, mano não lhe deu uma palavra.
Eduardo — E a razão disto não declarou?
Carlotinha — Ela ignora!
Eduardo — Como!
Carlotinha — Procurou recordar-se das suas menores ações para ver se poderia ter dado causa à sua mudança; e não achou nada que devesse servir nem mesmo de pretexto.
Eduardo — Com efeito! O fingimento chega a esse ponto!!
Carlotinha — É injusto, mano; aquele amor não se finge. Quando ela me recitou os versos que você lhe mandou…
Eduardo — Eu… Versos?
Carlotinha — Sim; uns versos em que a chamava de namoradeira, em que a ridicularizava.
Eduardo — Mas não há tal, nunca lhe mandei versos!
Carlotinha — Ela os recebeu de Pedro; eu os vi, escritos por sua letra.
Eduardo — Não é possível!
Carlotinha — Há nisto algum engano. Deixe-me acabar, depois verá. Eduardo — Eu te escuto.
Carlotinha — Os seus versos…
Eduardo — Meus, não.
Carlotinha — Pois bem, os versos causaram-lhe uma dor mortal; conheceu que o mano escarnecia dela, e desde então passava as noites a chorar, e o dia a olhar entre as cortinas para ao menos ter o consolo de avistá-lo de longe e de relance. Mas você conservava fechada a única janela na qual ela podia vê-lo.
Eduardo — Não sabes por quê? Um dia mandou-me dizer por Pedro que a minha curiosidade a incomodava. Desde então privei-me do prazer de olhá-la…
Carlotinha — É inexplicável!… Mas como lhe dizia, passaram-se dois meses; ela perdeu a esperança; seu pai tratou de casá-la. Desde que não podia lhe pertencer, pouco lhe importava o homem a quem a destinavam. Consentiu em tudo, mas antes de dar a sua promessa definitiva, quis vê-lo pela última vez.
Eduardo — Para quê?
Carlotinha — Para quê?… O noivo foi hoje jantar em sua casa; aí às três horas devia decidir-se tudo… Pois bem, antes de dizer sim, ela veio e jurou-me, por sua mãe, que se encontrasse mano em casa, se mano a olhasse docemente, sem aquele olhar severo de outrora…
Eduardo — Que faria?
Carlotinha — Não se casaria e viveria com essa única esperança de que um dia mano compreenderia o seu amor!
Eduardo — Assim, como não me encontrou…
Carlotinha — Como você hão quis vê-la…
Eduardo — Eu não quis?… É verdade!
Carlotinha — Quando o chamei, ela nos esperava toda trêmula.
Eduardo — Podia eu saber? Podia conceber semelhante cousa à vista do que se passou! (Refletindo) Não; não acredito.
Carlotinha — O quê?
Eduardo — Que Pedro tenha maquinado semelhante coisa.
Carlotinha — E eu acredito.
Eduardo — Vou saber disto! Porém, dize-me! Depois?
Carlotinha — Você saiu. Eu esperei muito tempo no seu quarto para ver se voltava.
Tardou tanto, que por fim vi-me obrigada a desenganá-la.
Eduardo — Então, ela voltou…
Carlotinha — Com o coração partido…
Eduardo — E foi dar esse consentimento, que seu pai esperava. A esta hora é noiva de um homem que faz dela um objeto de especulação. (Passeia)

CENA III
Os mesmos, Pedro

Pedro — Sinhá velha está chamando nhanhã Carlotinha lá na sala.
Carlotinha — Para quê?
Pedro — Para ver moleque de realejo que está passando. (A meia voz) Mentira só!
Carlotinha — O quê?
Pedro — Boneco de realejo que está dançando!
Carlotinha — Ora, não estou para isso.
Pedro — Umm!… Menina está reinando. Nhanhá não vai?
Carlotinha — Que te importa? Chega aqui, quero saber uma cousa.
Pedro — Que é, nhanhã?
Carlotinha — Mano, vamos perguntar-lhe?
Eduardo — Deixa estar, eu pergunto! (Afasta-se com ela) Escuta, queria pedir-te um favor.
Carlotinha — Fale, mano; precisa pedir?
Eduardo — Desejo falar à Henriqueta. Podes fazer com que ela venha passar a noite contigo?
Carlotinha — Vou escrever-lhe! Estou quase certa de que ela vem! Eduardo — Obrigado!

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