Dedo Podre: crônicas dos meus amores fracassados

O Primeiro Amor, a primeira dor – Dedo Podre

Quando eu era criança, lá pelos cinco anos de idade, talvez menos, eu tive uma namoradinha. Bem, não se pode dizer que eu era um menino precoce. Adoentado, cheio de vermes e com problemas de locomoção, acho que as minhas pernas só sustentaram o meu corpo lá pelos quatro anos mesmo. Posso dizer que fui o mais esperto dos meus irmãos. Pois fui o último a andar, e estou sendo o último a sair de casa, apesar de ser o primeiro a nascer.

Essa minha namoradinha se chamava Efigênia, eu suponho. Sim, porque a chamávamos de Figeninha, e se tem uma coisa que me arrependo em toda a minha vida, é de ter sido criança o bastante para não prestar bem atenção ao seu rosto, e hoje me esquecer do seu semblante, e também de nunca ter perguntado o seu nome completo. Claro, eu era criança.

Nossa relação de amizade se baseava no fato de que os outros falavam que estávamos namorando. Éramos muito ligados, e passávamos tardes inteiras em cima do muro conversando. Eu do meu lado, ela do lado dela. Eu acredito também que ela morava apenas com a avó, de quem eu, miseravelmente não me lembro o nome.

A minha casa tinha um quintal grande cheio de árvores, e ao fundo ficava um pé de urucum, onde eu gostava de ficar “namorando” com a Figeninha. Não sei sobre o que falávamos, nem do que brincávamos, pois essas coisas se perderam nas limalhas do tempo. Mas sei que ela tinha amizade com as minhas primas, sobretudo a Sheila, que hoje jura que não se lembra disso, para minha tristeza.

Um dia, esse paraíso na Terra se desmoronou, e eu entendi pela primeira vez na vida, que vivemos aqui nesse mundo para sofrer perdas. Um caminhão encostou perto da sua casa, e alguns homens estavam retirando os móveis. Ela olhava para mim, sem saber o que dizer. Dizer o que? Éramos crianças. A vida estava começando, e não tínhamos o traquejo necessário com as palavras, para dizer um ao outro o que sentíamos. Tampouco eu chorei, não porque eu fosse durão, mas porque eu era criança, e não tinha a  percepção de tudo que estava acontecendo. Só mesmo quando Figeninha subiu no caminhão, eu me dei conta de tudo. Ela estava indo embora, e para sempre.

Naquela época, eu não conhecia nada além da minha rua, e no máximo até o bar do “seu Leonda”, na outra rua, onde íamos comprar pipoca, e onde um tio sempre nos levava para comer ovo cozido e tomar Coca-cola. Nosso mundo era somente isso. Minha cidade era o meu quintal. E a única pessoa diferente do meu mundo, a pessoa que eu achei que nunca se separaria de mim, estava se afastando num caminhão  “Fenemê”, ou FMN, cara larga. Tão silenciosamente quanto ela entrou naquele veículo dos infernos, que me roubou a felicidade, ela permaneceu. E o nosso único ato de despedida, foi um aceno que ela deu, quase imperceptível.

Eu ainda passei algum tempo acreditando que ela fosse aparecer de repente, para brincarmos, e para ficarmos conversando, como fazíamos em outros tempos. Digo em outros tempos, porque naquela época, um ano, era como uma eternidade.

O tempo foi passando em torvelinho, e eu entrei para  escola.

Na terceira série, certa feita, eu estava sentado no recreio, lendo um livro do Ziraldo, quando a minha prima se aproximou sorrindo, e disse:

–Guigo, como é o nome da sua namorada?

–Eu não tenho namorada…–Respondi, aturdido.

–Tem sim.

Sheila apontou para  entrada da escola, e lá vinha ela. Figeninha, sorrindo para mim, e estendendo um imenso pedaço de bolo de laranja.

–Guigo…

Quatro anos haviam se passado até aquele dia, e naquela ocasião, a sua imagem ainda não tinha saído da minha cabeça. Era ela mesma!  Eu não soube o que fazer. Não sabia se ria ou se chorava. Olhei para Sheila, depois para ela, depois para Sheila, depois para ela, e depois para Sheila.

–Sua namorada, Guigo, Figeninha.

Eu sabia que era ela. Mas não acreditava. Pois já havia perdido as esperanças de voltar a vê-la. Eu ainda não tinha pegado o bolo, mas me apressei em abraçá-la. Depois o peguei. Não sei como consegui isso. Sempre fui muito tímido. E ela também era. Razão pela qual ficamos um olhando para o outro, rindo, sem falar nada.

–Não vão falar nada não?

Eu queria, mas a timidez me deixava mudo. Foi quando eu estendi o bolo para ela e perguntei:

–Quer?

–Eu trouxe para você…–Respondeu ela, sorrindo.

–É mesmo… –Disse eu, envergonhado da gafe. Obrigado…

–Vamos sentar ali.

Sentamos num banco que ficava atrás das chamadas “Salas de Ferro” (Quem era dessa época sabe do que estou falando), e foi a primeira vez na vida, que eu peguei em sua mão. E jamais poderia imaginar, que seria a última. Foi uma situação de tamanha ternura, que foi inesquecível.

–Eu pensei que não ia mais te ver. –Falei.

–Eu também. Mudamos para outro bairro, bem longe. Será que vamos poder nos ver mais vezes?

Fiz que sim com a cabeça. Dividimos o bolo e comemos juntos. O sinal tocou. Ficamos nos olhando, e aproximamos nossos rostos, acho que para nos beijarmos, mas o que tivemos foi uma trombada de cabeças. Doeu, mas seria uma lembrança tangível que eu teria dela. Figeninha saiu, sempre olhando para trás, como se não quisesse deixar a escola. Como se não quisesse me deixar.

Eu mudei meu trajeto da escola para a minha casa, para passar dentro dentro da estação ferroviária, e assim ter a oportunidade de passar por ela todos os dias. E nossos olhos, gratos por poderem se cruzar, se alegravam quando nos víamos. Mas éramos crianças, e tínhamos uma longa jornada pela frente. Um dia, ela não passou. E desse dia em diante, ela não passou mais. Ficou um vazio terrível. Mas eu achei mesmo, do fundo do meu coração, que um dia ela chegaria, quando fôssemos adolescentes, ou adultos, e dissesse: “Estou aqui, Guigo! Me ame”. Mas isso nunca aconteceu. Eu não sei seu nome completo, nem sei onde está, e por isso mesmo, talvez, isso jamais acontecerá. Ficando apenas a lembrança boa e ruim ao mesmo tempo, de ter, mesmo tão jovem, amado e perdido, afinal, essa é a sina humana. Em alguma altura da nossa vida, iremos amar e perder alguém. Esse drama da nossa existência é ao lado da morte, a maior certeza.

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