Jardim Brasil

Jardim Brasil [ed. 14]: A união destrói a maldição

 

 

FRÉSIA – VICTOR MORAIS

 “A união destrói a maldição”

 

Houve um tempo em que a loucura tentou me sufocar. Foi numa época difícil para nossa família, tão complicada que levou-me a acreditar que os Jardini estavam amaldiçoados, e nada seria capaz de desfazer o poderoso feitiço. Quando nosso barco se estabilizava no mar, não tardava para que uma tempestade se armasse. Éramos envolvidos pelo medo e a insegurança de nos afogarmos em nossos problemas. Os dias cinzentos não ajudavam, e muito menos as pessoas de fora, que agiam como juízes prontos para uma condenação.

Mas eu sabia que a tormenta teria fim algum dia. E teve. Da forma mais surpreendente possível.

Vivíamos eu e Jasmin, ou Jas, como eu preferia chama-la por pura preguiça, na casa da vó Leda, a matriarca dos Jardini, que não gostava do título. Quando completou sessenta anos, há um tempinho atrás, vovó pensou que, com a aposentadoria, finalmente conseguiria se dedicar ao prazer do crochê e às suas aulas regulares de dança de salão com as amigas, pois o vô Humberto já não estava vivo para impedi-la com seus sermões tradicionalistas. A vida, entretanto, a impediu de ter uma rotina tranquila, e resolveu coloca-la a prova.

No mesmo dia da aposentadoria de vovó (ironia, ou não), meus pais e eu sofremos um acidente, que foi fatal para eles dois. Eu sobrevivi milagrosamente. É isso que sou, de acordo com a vó Leda, um milagre. E devo agradecer todos os dias ao acordar por ainda estar viva. Na época, tinha apenas dois anos. Acho difícil lembrar-me dos rostos de Juliano e Jasmim, esses eram seus nomes. Papai tinha barba, e não era muito prudente ao volante, pelo menos não segundo as histórias que venho ouvindo durante minha vida toda sobre ele. A alta velocidade fora a responsável pela nossa batida, mas não gosto de culpa-lo. Ele está morto, oras. Mamãe, a filha da vó Leda, era uma mulher avançada demais para seu tempo. Levantava muitas bandeiras, embora eu não saiba o que isso signifique. Me deem um desconto, tenho apenas catorze anos! Pelos relatos, era charmosa, gostava de dançar e se divertir, e me amava mais do que tudo na vida. Às vezes, ainda consigo sentir sua presença.

Essa tragédia abalou toda a família, que nunca mais foi a mesma desde então. A vó não é revoltada com Deus, muito menos infeliz, pelo contrário. Me criou com alegria e bastante amor, fazendo o possível para me proporcionar conforto. Até tentou me ensinar a andar de bicicleta. Ela nunca se esqueceu, ninguém se esquece, não é mesmo?

Acontece que a história não é sobre mim. E o acidente não foi a primeira catástrofe a adentrar nosso lar. Tudo pareceu agradável por alguns anos. Vovó ainda tinha uma filha viva, a tia Bonina, grave esse nome. Era modelo, uma das mais conhecidas do nosso Brasil, mas tinha se afastado das passarelas por um motivo nobre: O nascimento de seus bebês gêmeos. Não me lembro de nada disso, tinha acabado de me mudar, foi depois da morte do casal JJ, mas vovó contou-me tudo um dia desses. Em homenagem aos meus pais, os recém-nascidos ganharam seus nomes, uma atitude que partiu principalmente do marido de tia Bonina, o tio Pietro. Assim nasceram Juliano e Jasmim, a prima Jas que eu já citei. Momentos de alegria e ternura para os Jardini, pelo menos por enquanto. Nosso barco estava atracado no porto dos Prazeres, mas em breve teria que rumar a vila da Morte.

Menos de seis meses após os nascimentos ‘abençoados’, o tio Pietro, um cara sensato, administrador dos bons e que fazia panqueca como ninguém, acabou dormindo na direção depois de um cansativo dia de trabalho. Ele retornava de uma convenção em Brasília e recusara-se a pegar um taxi, mesmo com a insistência dos amigos. O carro capotou, caiu em uma ribanceira. Houve uma vítima, mas não foi tio Pietro.

Tia Bonina tinha deixado Juliano com um compadre pois iria participar de um evento de moda e só poderia levar uma das crianças. Ela escolheu Jasmim, que livrou-se do acidente, e hoje, assim como eu, é considerada pela vó como o fruto de um milagre. O casamento dos dois desmoronou depois da morte do gêmeo. Os dias cinzas retornavam! Era a Morte agindo mais uma vez!

Vovó relata que o casal dividiu-se para sempre a partir daquele fato. Tia Nina ficou convicta a processá-lo pela morte do bebê, e chamou-o de assassino para quem pudesse ouvir. Um vendaval de baixarias, onde o rancor imperava com gosto. Meses depois, decidiu que iria remover o pedido judicial. Tio Pietro já não era o cara que todos conheciam. Perdera a vida e culpava-se o tempo todo. As bocas más dizem que o cara tentou o suicido algumas vezes, sem sucesso, graças a Deus.

A vida deu uma nova oportunidade para ele. Já divorciado e tentando recomeçar, em passos lentos, mas significativos, soube pela boca da própria tia Bonina que ela iria retomar a carreira de modelo. “Um chamado do mundo da moda”. Ambos tiveram uma conversa longa, segundo a vó fala. Coisa de adulto que gosta de complicar o simples. Houveram pedidos de perdão, alguns tapas, confissões, lágrimas, mas conseguiram se acertar e chegaram num consenso ‘justo’. Tio Pietro ficaria com a guarda da prima Jas. A tia iria visitar sua filha nos breaks das temporadas, quando a viagem seria permitida, ou então quando estivesse sem compromissos na agenda. Poxa, vó Leda suspira quando fala da vida de modelo da tia. “É mais cruel do que você imagina”, ela pondera.

Tio Pietro fez o que pode para educar Jas, e com louvor. Ele deixou a alegria inundar seus olhos. Tudo aquilo iria compensar a morte de Juliano, jurou. Eu queria ter tido um pai como ele, até invejava prima Jas, mas não deixava transparecer, afim de não desapontar vovó ou fazê-la entrar no seu modo depressivo, tão temoroso. Por quase uma década, a rotina de Jasmim, que ainda terá grande importância na história, espere um pouco para ver, foi ver a mãe nas férias. As vezes chegava a viajar para Milão e esbanjar seus trinta dias de folga escolar em piscinas e restaurantes chiques com tia Bonina, que tornou-se um símbolo nacional de renascimento. Era uma das mais importantes top models, e já se aproximava dos quarenta. Jas contava que a mãe era sua heroína. Não que esnobasse o pai, mas o sentimento por aquela mulher tão elegante e sábia lhe envolvia de uma maneira até incômoda.

Mais uma vez, os Jardini pareciam inertes às maldades do mundo. Estava tudo muito bacana e calmo, sem ventania ou maré alta. Chamo-os de anos da meditação. Acontece que a paz acabou de vez no semestre passado.

Eu sabia que não seria um bom dia assim que acordei. 28 de setembro. Uma espécie de névoa circulava pelo quarto. Lá fora, céu cruel e fechado, propício para o que viria a seguir. Eu respirava um ar pesado, estranho e inapropriado para o começo de domingo. Na cozinha, vi vovó debruçada sobre a mesa, aparentemente imóvel, e perguntei-lhe o que tinha acontecido. Vi lágrimas em seu rosto, e uma tristeza que deixava-a incrivelmente mais velha. Vó Leda tentou circular por outros assuntos, mas exigi objeção e ela não teve escolha, afinal, todos teriam que saber da novidade que o vale da Morte tinha aprontado para os pobres Jardini.

− Seu tio Pietro está morto.

Vó Leda explicou que ele tivera um ataque do coração repentino enquanto preparava algumas panquecas para servir à sua nova namorada, Roberta. Foi então que comecei a formular a teoria da maldição. Ainda bem que Jas não estava em casa na hora da parada. Havia se inscrito para um acampamento na escola, passara a noite por lá, provavelmente ouvindo histórias de terror e aprendendo técnicas de sobrevivência que talvez nunca fosse usar. Minha primeira reação foi um choro de horror, que, compartilhado com vovó, aliviou nossos corações parcialmente. Tentei consolá-la, mas minhas palavras ingênuas não eram poderosas o suficiente para livrar a velha da dor da perda, capaz de desnortear até os mais fortes e seguros de si. Em especial estes últimos.

Naquela época, eu, com meus pífios treze anos, não era madura a ponto de enxergar as preocupações que vovó tinha em mente.

Como contar para a Jasmim?

Por quê tínhamos que ter tantos períodos de luto? Por quê nós, Deus? Nossa família já estava despedaçada, e, a cada perda, nos enfraquecíamos mais. Um dia, o barco iria afundar com todos os Jardini a bordo, e então seriamos extintos.

Era ela, a maldição!

Vó Leda se encarregou de conversar com tia Nina e com a Jasmim. Ambas não demonstraram reações, a princípio. Era como se a matriarca estivesse apenas lendo um conto de ficção que teria final feliz. A prima Jas, garota decidida, alegre, quase uma fortaleza, só se deu conta do grau de veracidade depois de ver o corpo do pai no cemitério. Estava frio e pálido, claro. Aí a anestesia acabou. Ela teve que ser internada e sedada para que os gritos cessassem. Tentamos lhe dar suporte, em vão. Jasmim tinha fel na boca, pedaços de vidro cortando sua garganta. EXPERIMENTANDO A SENSAÇÃO DA PERDA.

Não gosto de dividir os seres humanos entre bons ou maus, mas a tia Bonina agiu como uma perversa diante da morte do tio Pietro. Eles tinham diferenças, ressentimentos, mas o passado não pode anular o presente. Quando perguntada se iria ao velório ou enterro, ela respondeu que não chegaria a tempo, talvez por não ter desculpa mais convincente, uma vez que qualquer um bom de cálculo farejaria a mentira através de uma simples conta do tempo de vôo entre Milão e São Paulo. Foi a primeira vez que escutei vó Leda falar palavrões no telefone. Ela xingou a filha de nomes que eu não ouso repetir. A discussão terminou com uma desligando a ligação na cara da outra, banhadas na ignorância e falta de educação. A diferença é que alguém estava pensando no estado de Jasmim.

A Jas esperou sua ‘heroína’ aparecer nos céus da metrópole para consolá-la, mas tia Bonina não chegou. Nos e-mails, com certeza escritos por terceiros, ela fazia falsas promessas de que iria visita-la sem demora. A ausência da mãe pesou na balança, e nós vimos Jasmim se transformar. O luto modificou-a, aliado à maldição que eu não conseguia ignorar. Seus sorrisos foram substituídos pelas expressões sérias. Perdera a vontade, as cores, os sentidos. Ficou desorientada e calada. E cada vez falando menos. Sem piadas ou conversas cotidianas. Parecia estar…apodrecendo.

Perante a decisão de tia Bonina, o abandono elegante, vovó não hesitou em ficar com a guarda de Jasmim, e assim ela chegou na nossa casa. Um período de adaptação cru, repleto de embaraços, impertinências e lágrimas. Eu era quem mais conversava com Jas. Éramos ambas órfãs, de mãe e pai, acreditem. Tentei ser natural ao dissertar sobre a morte. Às vezes, Jasmim se distraia com banalidades e ficava minutos dispersa no meio de um diálogo. Estranho, no mínimo, mas nada que eu não pudesse compreender. Vovó se esforçava para lhe dar afeto. Queria o lar alegre, tarefa impossível, pelo menos nos primeiros meses. Estávamos em uma ressaca.

Jasmim sofria quieta. Era inadmissível que alguém a provocasse na escola, mas existia bullying, eu defendia a hipótese, porém vovó não enxergava esse problema, e eu não conseguia conta-lo por pensar que fosse loucura de minha mente fértil. Via Jas triste, abatida após o período na sala de aula, reprimida, encolhida. Aí você me pergunta: Como ela lidou com todas tristezas?

E chegamos à fase da Gula, senhoras e senhores. Ela descontava as mágoas comendo o máximo que pudesse. Foi uma maneira acessível que achou para livrar-se delas (e nada momentânea). Vovó e eu, uma dupla imbatível e cheia de bons argumentos, tentávamos fazer Jasmim fechar a boca, missão árdua, pois ela estava ferina e queria usar seus espinhos para machucar quem lhe contrariasse. Se estava triste, devorava um pote de sorvete de uma vez. Se lembrava de um momento feliz com o pai, enchia-se das porcarias contidas no nosso armário. E a vó Leda não conseguia parar de compra-las, pois carregava dentro do velho coração o receio de uma possível rejeição da neta. Um ciclo vicioso crescia, acarretando graves consequências.

Num certo dia quente de dezembro, vovó e eu fizemos as estatísticas: Jas tinha engordado quatro kilos em menos de um mês. Ela dizia que a fase era passageira. Jasmim calava-se cada vez mais. Apenas palavras sem sentido saiam de sua boca. Onde estaria a responsável tia Bonina? Na virada de ano, acordei com sede às duas da manhã e abafei um grito ao vê-la comer os restos de nosso pavê com as mãos. Não era a prima ali, talvez fosse produto da maldição. Após esfregar os olhos, a vi como um ser pedindo clemência. AJUDEM-ME, gritava internamente.

EU VOU TE AJUDAR, prima.

Todos nós precisávamos de ajuda na casa.

Jas se sentia mal pela gula, arrependia-se instantes depois. Ah, e como chorava. Vovó era incapaz de lidar com firmeza, e eu não tinha autoridade, servia somente de conselheira. “Contenha-se”.

E ela conteve-se. Demorou, mas aconteceu. Numa manhã preguiçosa de janeiro, colocou ponto final na situação. Não digo que foi tarde, nunca é, pessoal, só que a situação estava chegando ao seu limite. Jas era classificada como obesa. A prima me jurou que não enxergava a gravidade de seu problema, talvez estivesse anestesiada (eu prefiro amaldiçoada!). Chegara a um ponto que não tinha mais razões para explicar-se.

− Eu vou parar− Ela fez a promessa diante de mim e de vovó− Vão haver tentações e dificuldades, mas vou superar todas.

Instantes depois da nossa conversa ao redor da mesa do desjejum, uma ligação. Vovó atendeu impessoal, como sempre, mas o tom foi se ajustando a medida em que ouvia as palavras do ser humano do outro lado da linha. Durou mais ou menos cinco minutos, e a vó Leda não falou muito. Apenas os habituais “ok” “pode chegar” “tá certo”, esse último seu vício de linguagem.

− Quem era?− Perguntei, aflita e incomodada− Pela sua cara, parece que vão nos tirar a casa, vó.

− Era…A Nina. Se aposentou de vez, está voltando amanhã para o Brasil− E virou-se para prima Jas, num tom de consolo misturado com alerta− Tua mãe tá voltando.

***

Pobre de mim que pensava que a família estava livre da maldição. Tia Nina regressando era uma notícia que habitava os pesadelos de Jasmim. Após receber a bomba, emudeceu. Não conseguia decifrar em suas expressões se tinha ódio ou uma alegria estranha pela volta da polêmica mulher. E havia uma certa expectativa sobre o que ela iria dizer.

Ao voltarmos da escola, vó Leda estava à espreita no sofá. Ansiosa e com certeza roendo os restos da unha. Queria respostas da neta, mas não as teve. Anunciou então, no final do jantar, que iria fazer um almoço especial por conta da volta da filha. Comentei com ela que tia Bonina não devia apreciar lasanhas ou escondidinhos, e, de maneira ríspida, a vó disse:

− Se ela não quiser, fica sem comer. Simples.

Não estava feliz e nem pronta para ter tia Bonina como moradora do lar, mesmo que somente por alguns meses, já que posteriormente a modelo iria comprar uma cobertura ou mansão nos nobres bairros da cidade. Vó Leda tinha uma raiva que agia como coceira em seu corpo, deixando-a nervosa. O silêncio da Jas complicou tudo. Tentávamos pensar como psicólogas, mas a prima era boa atriz, sabia como usar todos os truques da atuação nos momentos certos. Piscava pausadamente, levantava a sobrancelha e desviava o olhar, evitando que pudéssemos analisa-la.

Tinha certeza que ela não iria falar nada, e ignoraria a mãe no dia seguinte. Eu conseguia prever a tempestade se formar no copo d’água, e o nosso barco naufragar de vez. Rezava para que não houvessem mais mortes. Chega de sepulturas!

Contrariando minha linha de raciocínio, prima Jas voltou a surpreender. Antes de deitar-se, após beber seu leite com canela de toda noite, hábito que o pai lhe ensinara a cultivar, abriu a boca para ser incisiva:

− Espero que vocês não pensem que eu vou ser receptiva com aquela mulher. Ela me abandonou.

E assim a noite tornou-se aterrorizante para dona Leda. Vovó chegou a implorar que eu mudasse a cabeça da prima Jas, mas nem mil conversas conseguiriam a proeza. Mesmo assim, prometi que iria tentar com afinco. Alguma parte teria que ceder, para o bem da maioria. Tia Bonina aprendendo com a filha, e vice-versa.

O grande dia chegou. Bonina trouxe consigo a chuva. No turno da manhã, enquanto prima Jas e eu estávamos na escola, conseguia fisgar um certo suspense rondando nossas almas. Não tinha divergências com a ‘modelo mais amada do Brasil’, mas também não possuía motivos para amá-la.

Ao chegarmos em casa, deparamo-nos com um monte de malas, mochilas, maletas, uma bagagem RESPEITÁVEL correspondente aos anos da tia na Itália. Por certo trouxera um pedaço do Coliseu para a família apreciar, e faixas de vitórias, muitas delas. Como uma boa prima, tentei preparar o terreno para o reencontro destas duas forças da natureza. Não tinham se visto desde antes da morte do tio Pietro. Segurei na mão da Jas, fiz sinal afirmativo com a cabeça. Ela teria que encarar essa adversidade e muitas outras ao longo da vida. Não disse isso, apenas pensei poeticamente, devo ter retirado as palavras de um livro de auto-ajuda.

Caminhamos em direção à sala, e antes de conseguirmos avistar a vó e a tia, meu ouvido apurou que estavam falando alto nos fundos do cômodo. Discutindo, certamente. Ah, não. Era o pior jeito de começar uma nova etapa. Já nos aproximávamos da salinha, não tinha mais como dar meia-volta. Esbarrei em vários objetos propositalmente, na esperança de que vó Leda ouvisse e encerrasse a briga de maneira sensata. “Elas chegaram”, pensaria, “hora de acabar o circo”.

Infelizmente, nenhuma teve audição apurada para escutar meus ruídos bem intencionados. Falavam alto demais. Eram agressivas nas palavras. Trocavam acusações.

− Como teve a audácia de deixar minha filha chegar a esse ponto?

− SUA filha? Tem certeza, Bonina?

Eu já estava vermelha, de vergonha e de cólera. Jasmim fingia não ouvir, e fingia bem, contudo seus macetes não funcionavam comigo. Numa última tentativa, enquanto colocávamos nossos pés no velho tapete persa da sala, pigarreei o mais forte que consegui. Imaginei ser uma fumante à beira da morte. Funcionou. As duas raposas ariscas calaram-se e abriram falsos sorrisos para a recepção.

Mas o de tia Bonina não durou nem meio minuto. Na verdade, todos aqueles instantes foram mais longos do que deveriam ter sido. Em câmera lenta, acompanhei a expressão da ‘renomada top model’. Não fazia questão de esconder sentimentos. Tinha estranheza no olhar, e certa repugnância. Reparava minuciosamente na filha, explorando cada parte de seu corpo, coletando dados que lhe fossem pertinentes. Seus olhos dançavam a valsa da análise. A boca torcia-se. Era literalmente um abismo entre as duas. Jasmim cruzou os braços, esperando uma suplica, talvez um pedido de redenção.

Tia Bonina beijou sua testa com frieza.

− Oi…Oi, minha filha.

Prima Jas não fez questão de responder. Não chorava, mas desejava romper-se em lágrimas, como se não houvesse amanhã. Os seres humanos lidam com seus sentimentos de formas diferentes, cada qual com sua particularidade. Jasmim sabia dominá-los, já a tia Nina, vestida na manta do orgulho, preferia deixá-los a mostra para atacar e defender-se ao mesmo tempo.

Oi…Oi, minha filha”. Falta de criatividade, de vontade. Jasmim subiu as escadas e acompanhei-a, ainda em silêncio. Gostava de despejar comentários ácidos no quarto, um ambiente só nosso, a ‘fortaleza das primas’.

− Você viu como ela me olhou?− Jas afogara o rosto em um confortável pena de ganso− Ela não me ama.

− Estamos apenas no início de uma longa história− Sintonizei numa rádio que fosse aprovada por todas as integrantes do recinto- eu e ela, e deitei-me ao seu lado− Você e sua mãe vão ter que achar um jeito de se entenderem, ou pelo menos de se falarem, nem que finjam alegria. Vovó não pode morrer sem presenciar a reconciliação.

− Vó Leda é grande o suficiente pra entender que eu cortei relações com essa mulher que se diz minha mãe…É minha palavra final− Ressaltou, furiosa− Como ela quer exigir tanto se esteve ausente quando eu mais precisava? Faça-me o favor, prima. Eu sei o significado de MÃE. Sou órfã.

Decidi não prolongar a conversa, ou nós duas findaríamos com enxaqueca. Passamos o resto da tarde no quarto, conversando sobre qualquer tópico que nos afastasse de Bonina. Quando entrou para avisar que iria ao mercado, vovó avisou-nos que sua filha estava repousando, tentando tirar a sobrecarga da longa viagem.

Na hora do jantar, Jas suplicou uma permissão especial para comer no quarto. Vovó negou. “Não adianta adiar o inadiável”, disse. Soou como um trava-línguas. Estávamos todas confusas e desnorteadas, não para menos.

Tia Bonina comia sem ânimo uma porção digna de passarinho. Sentei-me ao seu lado. Vovó e Jas buscaram as cadeiras do outro. Nos primeiros minutos, mais um show do Sr. Silêncio Constrangedor da Silva. O clima pesado fazia-me rejeitar até mesmo a famosa lasanha de berinjela da dona Leda. E falando nesse delicioso prato…

− Me passa um pouco mais de lasanha− Jas solicitou para a vó.

Tia Bonina ‘a esbelta’ reprovou o pedido com uma expressão de incomodo. Coçou a bochecha esquerda, os pés estavam inquietos. A qualquer momento, alguém naquele campo minado iria se dar mal. BOOOOOOM!

− Acho que…Já chega de lasanha…− Ela tirou a travessa das mãos de vovó e encarou a filha com uma firmeza arrogante. Tomou ar para concluir− Você tem que aprender a se conter, né?

Jasmim evitou responder. Saiu calada, sem dirigir-se à mãe. A ausência de diálogo me enlouquecia, a ponto de eu morder meu lábio com força suficiente para que sangue saísse. Todos tinham coisas engasgadas em suas gargantas, mas não conseguiam vomitá-las. O que sobrava? Talheres batendo nos pratos, copos na mesa, mastigações apressadas, o ventilador num nível baixo, o aquário de vovó.

Quando estava colocando o prato na pia, ouvi novamente pedaços de fala. Só restos chegavam aos meus ouvidos.

−…Se continuar gorda, ela vai sofrer na escola, pra arranjar um namorado, pra arranjar um emprego. A culpa não é minha! É o mundo, mãe!

− É muito fácil apontar as soluções, Bonina, e me culpar, mas você nunca atendeu meus chamados, e eles eram urgentes, minha querida. Você não acompanhou o processo, os problemas, o luto! Ignorou sua família para desfilar nas passarelas, então continue nelas, e nos deixe em paz!

Pensei em aplaudi-la.

− Temos que pensar no bem estar da Jasmim, no psicológico dela, em como ela está transtornada com tudo isso! Você não parece entender o óbvio, não enxerga além da…Beleza!− E bateu os punhos na mesa.

Como eu admirava a vó Leda. Que discurso, que mulher!

A noite foi longa. Custou para acabar. A lua hesitava em trocar de turno com o colega sol. Acabou cedendo.

O que estaria por vir seria pior do que o jantar da lasanha de berinjela.

Eu não fui à escola no dia seguinte por conta do conselho de classe, que ocorria bimestralmente. Era uma reunião onde os professores avaliavam seus alunos matéria por matéria, processo longo, que eliminava um dia de aula. Cada sala tinha seu ‘Dia do Conselho’. Na turma de Jas, seria apenas na semana seguinte. Estava livre de acordar cedo e poderia preencher a manhã assistindo minhas séries de suspense ‘que não são de Deus’, ressaltava vó Leda. Resumindo: Jasmim foi à escola, eu zombei um pouco embora soubesse que daqui há uns dias ela estaria na vantagem, depois voltei a dormir.

Como um zumbi, saí da cama às 10h, sem vergonha na cara. Eu era assumidamente preguiçosa. Vovó me avisou que estava faltando leite, então fui de café puro mesmo, forte e sem açúcar. Não digo que era bom, e sim revigorante.

− Onde está Tia Bonina?

− Você não vai acreditar no que eu fiz− Tinha expressão de criança travessa− Inventei pra Jasmim que a van não passaria hoje. Disse que o perueiro teve um mal súbito. Meio que obriguei ela a aceitar a carona da Nina, que ia pra mesma direção…As duas no carro, espero que tenham se entendido, rezei o dia todo, conversei com o padre Sebastião…Quando Jas voltar, saberemos o que houve dentro das quatro portas.

− Não se anima− Me arrependi do tom realista− Essa ponte não vai se construir tão facilmente, vó. Sabe como são as cicatrizes! Vai demorar pra que as duas aceitem suas diferenças. E eu tô do lado da prima, já deixo avisado! A tia Nina quer poder sobre a menina, mas não tem o direito…

− Sei que não posso ficar forçando situações, mas não resisti! A culpa não é minha se o coração do perueiro acordou mal− E riu.

O dia estava tão bonito, ensolarado, propício para uma caminhada no parque ou uma ida ao clube aquático. Impressionante a habilidade da cidade em mudar no decorrer da semana…Do frio polar ao calor Egípcio, de céus nublados a noites com estrelas brilhantes, porém raras.

Pensei em arejar uma brisa matinal, e eis que quando abro a porta, um vulto apressado esbarra em mim e entra correndo na casa.

− ELA TENTOU ME FORÇAR A IR NO MÉDICO− A pele da prima Jas estava na tonalidade mais forte do vermelho− AQUELA INFELIZ FINGIU QUE ESTAVA ME LEVANDO PRA ESCOLA, MAS NA VERDADE ME EMPURROU PRA CLÍNICA DE EMAGRECIMENTO!

− Ah, meu Deus− Vovó chorou− Filha, ela só tá pensando no teu bem!

− Vó, você não pode defender ela! Não pode!− Jas enlouqueceu. Queria derrubar todos os móveis que estivessem pela frente.

− Eu estou tentando construir um futuro para você, minha filha− Tia Bonina entrou− E não adianta sair correndo, fugida de mim. Estou aqui agora, e vou lutar pelo seu bem! Mas você não facilita, não conversa, quer tornar as coisas mais complicadas, ok, aceito o desafio, querida!

− Já passou pela sua cabeça perguntar o porquê desse meu silêncio? Do boicote à sua pessoa? Ou será que não é capaz de raciocinar? É fruto do passado!

− Eu olho apenas para o futuro, filha! E o seu não é próspero. Não sou preconceituosa, é que…

− Sempre tem um porém!− Jas fulminou− Você não me reconhece como sua filha comigo nesse estado, certo? Não é assim, super top model? O importante é apenas a aparência, essa é sua regra n°1! Eu sou a consequência do que fez!

Tic tac, tic tac. As duas lutavam e eu era a juíza. Último round. Mãe e filha. Leoas. Tão cheias de argumentos. Tão vívidas. Os peitos inflados.

− Eu sou a culpada por você ter virado obesa? Se eu tivesse aqui, esse pesadelo não seria real! E pare de falar das aparências, é a sociedade, é a sua saúde!

− Eu cuido de mim agora, com a ajuda de vovó e da prima. Você não é mais necessária…Volte pro seu mundo de luxo e me deixa com meus problemas! Você jamais saberia resolvê-los, não tem senso pra tal. Reconheço que a gula anexa a tantos traumas me deixou desse jeito, mas não significa que eu seja um monstro, dona Bonina! Estando magérrima ou obesa, você nunca ligou para mim, e agora é tarde ter atitude…Vai embora, será melhor pra todos− Prima Jasmim tomou fôlego após o ininterrupto discurso que atingia vovó profundamente− Papai morreu. E você também, no meu coração. Sou uma órfã.

Dito isso, subiu as escadas e trancou-se no quarto. Não permitiu minha entrada. Vovó iria entrar em colapso, teria um derrame, eu já podia prever o Vale da Morte sorrindo com uma intensidade devastadora, um furacão de sentimentos.

Tia Bonina rejeitava contato físico. Falou que iria dar uma volta de carro. Vó Leda sugeriu com o olhar que eu a acompanhasse, e como nosso código de telepatia estava no mais perfeito sincronismo, pisquei em sinal afirmativo. Mordi o lábio inferior, perguntando se ela ficaria bem. Levantando a sobrancelha esquerda, indicou que sim. Ainda bem que não foi a direita.

− Estou indo para o centro de modelos. Não se importa de estar em um lugar tão artificial?− Tia Bonina engatou a primeira. Ainda não tinha colocado o cinto, isso me incomodava.

*Os Jardini estão propensos aos acidentes. As estradas nos odeiam*

− Não me incomodo nem de ir para gabinetes políticos com vovó, imagine para esse centro agradável− Respondi.

A tia, ainda sem cinto, estava frágil, jururu. Eu não posso dizer que ela seja vilã. Apenas fez escolhas erradas, que julgava serem as certas. Jamais pensou em prejudicar Jasmim, porém o fato de nunca tê-la ido visitar me encucava. Talvez estivesse fazendo investimentos para o futuro da filha com o arrecadado em seus desfiles inovadores. Ela amava a Jas, queria desculpar-se, não sabia como, era impulsiva, um bocado agressiva e desmedida. Faltava uma conversa digna. Queria vê-las bem.

Jasmim faria o mesmo se a situação fosse mim entre minha mãe. Ah, e como preferia ter brigado com ela do que vê-la morta sem nem ao menos lembrar de seu rosto sem recorrer às fotografias emboloradas.

− Eu e Jasmim nos aventuramos na cozinha semana passada. Foi um desastre. Tentamos alguns dias depois, e a panqueca dela saiu tão deliciosa quanto as que tio Pietro fazia…Ele me disse que aprendeu contigo.

− Já entendi o que está querendo me dizer, ok? Perdi mais um momento importante da vida da minha filha! Você também quer me apedrejar! Mas não entende que…Eu nunca queria ter voltado pra essa cidade! E não sabia como me expressar…Eu simplesmente…

− Tia Nina− Peguei na mão que não estava no volante, transmiti minha energia zen− Eu não vou brigar com você. Nunca é tarde pra recomeçar, ignore o que a Jas disse sobre isso…Mas você tem que tentar compreendendo ela, se inserindo na vida da prima…Como uma mãe faz! Devia ir à reunião de pais, os professores são só elogios, e ela está ficando cada vez melhor no piano! Agora anda escrevendo umas poesias, até penso que esteja apaixonada…Prima Jas é muito mais do que um corpo. O mais importante é ela se sentir bem, saudável, claro, porém de alma lavada, com felicidade no coração…

Ela chorava. Suas lágrimas equivaliam anos. Eram pesadas, cortantes. Machucavam seu rosto delicado. Parou no sinal vermelho e finalmente pôs o cinto. Não queria olhar para as ruas, como se fosse ser engolida por elas.

− Eu nunca quis voltar pra cá. Mas você é nova pra entender…

E de repente uma lâmpada se iluminou em minha mente, e as engrenagens voltaram a funcionar. Fim da neblina, tinha resolvido o mistério dela: O problema eram as lembranças. O gêmeo Juliano. A morte. A cidade lhe trazia tudo de volta, assombrando-a como um fantasma. Assim que perdeu-o, só conseguiu refugiar-se para não ter que lidar com o sentimento, e para agilizar a anulação dos maus momentos, recorreu as passrelas.

Tia Bonina também estava morta, há muitos anos. Morta de espírito.

O centro das Modelos era enorme. O lugar acabou demolido anos depois para depois tornar-se uma grande loja de varejo. A área principal era composta de várias passarelas onde jovens lutando contra o sr. Tempo tentavam garantir suas vagas em festivais antes de envelhecerem. Cheiravam à pressão. Algumas de fato felizes e realizadas, enquanto a maioria com alma cansada. Mas jamais curvavam-se. Os bastidores, agitados. Testemunhei intrigas, amizades e desmaios, e estava sentada lá há menos de vinte minutos. Tudo muito dinâmico e perfeccionista, mas também bagunçado, difícil de descrever. “Aproveite o hoje, não haverá amanhã”.

Resolvi circular entre os camarins enquanto tia Bonina se reunia com diretores para definir sua participação como jurada em um dos próximos concursos patrocinados pelo estúdio. A maioria estava ocupado, mas os vazios eram perfeitamente exploráveis. Grandes espelhos, bastante maquiagem, garrafas de água, roupas espalhadas pelo cubículo, e todo tipo de acessório imaginável.

Nas mesas, alguns folhetos que me despertaram curiosidade. Calendários. Detalhavam as datas importantes para as modelos. O mais próximo era um concurso regional, e depois deste, um especial, criado apenas para…Modelos plus-size.

Tive uma ideia.

Naquela noite, evitei sutilezas e fui direto ao assunto com Jasmim, que preparava-se para dormir.

− Já percebeu que sua mãe não é feliz?

Ela fingiu não ter ouvido e achei mais eficaz não repetir. Prima Jas iria refletir sobre a pergunta. Ficaria maquinando respostas até o sono tomar conta de seu pensamento.

Acordamos com o cheiro de panquecas na cozinha, uma grata surpresa, pois vó Leda não gostava de nada que desse trabalho pela manhã. O cardápio especial era aplicado apenas em datas especiais, como nossos aniversários, ou se não tivesse nenhuma nota vermelha sequer no nosso boletim.

Descemos guiadas pelo cheiro hipnotizante. Vovó chegara ao ponto de recorrer para as panquecas, pensei. Mas na cozinha, era tia Bonina no comando das panelas. Virou uma panqueca como profissional, giro perfeito, depois colocou-a no prato. A sequência executada com perfeição me fez colocar um belo DEZ em seu boletim, na matéria CULINÁRIA.

− Ainda tenho o dom− E riu pra gente. Um sorriso puro. Feliz mesmo.

Vó Leda nos convidou para sentar. Era a cúmplice de tia Bonina.

− Isso não muda nada do que eu disse− Prima Jas pegou uma maçã da fruteira e lavou-a− Estou sendo saudável, viram? Agora se me dão licença, estou atrasada.

Tia Nina escondeu o desapontamento. Errou a massa de lugar e colocou-a na própria mão, enquanto a frigideira queimava na boca mais larga do fogão. Tão desconcertante que as panquecas na pilha murcharam.

− Eu vou sair daqui na semana que vem− Falou antes que Jas saísse− Na semana que vem. Vou para um apartamento que estou comprando.

A resposta da prima foi a porta batendo. Eu não a segui, em nome da minha honra de amante de panquecas, provei as de tia Bonina. Macias, cozidas no ponto certo, não muito doces, tão boas quanto às de tio Pietro. Até melhores! Fiquei curiosa: Com quem tinha aprendido a fazer essa delícia da humanidade?

No pátio da escola, durante o intervalo, me distanciei do meu grupo de amigas e fui até prima Jas, que ouvia música sozinha em um dos cantos cobertos do espaço. Me sentei ao seu lado, tirei um papel-alumínio com uma panqueca sobrevivente do café da manhã (ou tentativa de reaproximação da manhã), e entreguei em suas mãos. Uma parte gulosa de mim queria que ela rejeitasse, mas tive que matá-la e deixei somente meu lado bondoso agir.

− Dá uma chance pra ela.

− Não acredito que entrou no time Bonina− Ela jogou-a no chão com rispidez− Não quero nada que venha dessa mulher…

− Não dispense as panquecas. Aproveite a regra dos cinco segundos. Pras mães, tem a regra dos cinco anos− Tentei a brincadeira, em vão.

Jasmim chutou a coitada da panquequinha. Uma lágrima involuntária saiu de meu olho direito. Cruel.

− Prima, presta atenção− Tomei o celular, o grande responsável pela distração humana naquela época, antes do surgimento do DCPX, e encarei-a com a maior seriedade existente dentro de mim. Seus olhos eram um céu nublado no dia da morte de alguém, mas havia o azul-alegria no fundo, esperando para ser chamado− Ela errou? Sim! Mas se arrependeu e tá disposta a uma nova etapa, agora só depende de você! Uma hora ou outra, você vai ter que ceder, Jasmim! A Nina é sua mãe!

− Não é, não! Nunca fez questão de ser!

− Procure saber o porquê! Conversa com ela, tenta uma concordância, ou você vai se arrepender disso no futuro! Você tem mãe SIM− Estava beirando o grito− Eu que não tenho, prima, e nunca mais vou ter a minha.

Fiz minha saída triunfal pós frase de efeito e não testemunhei qual sua reação. Teria o céu clareado?

Alguns minutos depois, procurei pela panqueca embrulhada no alumínio. Não estava largada no chão.

Feet don’t fail me now

Take me to the finish line…

À noite, percebi que os impedimentos iam desaparecendo pouco a pouco. Desci para beber minha água da madrugada e flagrei uma conversa entre vovó e Jasmim, que, sabiamente, tinha enchido sua cama com travesseiros para que eu não reparasse na sua saída. Nenhuma das duas me viu, estavam na sala, e atravessei para a cozinha agachada, sentindo-me como uma espiã. De lá ouvi o assunto.

− Você se sente bem assim, minha neta? Não quer mesmo ir à um médico? Estou aqui pra te ouvir, quero o melhor pra você, por isso interfiro em suas decisões…

− Eu não entendo por que o pessoal tem tanto preconceito com quem tem uns quilinhos a mais, vó! Como se não fossem gente! Eles pensam que não podemos ser felizes, que eu não posso me divertir!

− Não pense nos outros! Fale com o seu coração! Se estiver se sentindo prejudicada, vamos procurar ajuda…Você não é pior do que ninguém, Jasmim! Eu te amo do jeito que for…E sua mãe também, creia.

As duas se abraçaram e o sorriso dos meus dentes (clareados) iluminou a cozinha escura. Não era felicidade, e sim alívio. Juntei as mãos e agradeci a Deus, e a quem mais estivesse lá em cima olhando por nós. Amém!

Pela primeira vez, suspeitei que a maldição estava se enfraquecendo. Alguns dias depois, tive a prova definitiva.

***

Era a vingança de Jasmim. O dia do conselho de classe de sua sala. Tinha liberdade para faltar, enquanto eu rumaria a escola. Droga. Vovó contou-me que abriu os álbuns de foto pois procurava por um papel importante. Portava a péssima mania de perder estes. Tia Bonina, prestes a se mudar, ajudava ela. À essa altura, o relacionamento com Jasmim estava ‘um pouco melhor’, ou ‘menos pior’ dependendo do ponto de vista. Se antes não se falavam, haviam evoluído para ocasionais ‘bom dia’ e ‘oi’, ou ‘me passa o sal’.

Deu que vó Leda abriu numa página com a foto de Nina, tio Pietro e os dois gêmeos recém nascidos na maternidade. Estava sépia.

Tia Bonina virou-se para trás, como se não tivesse visto. Ficou nervosa. Vó Leda tentava virar para a próxima parte, mas as mãos trêmulas a impediam. Olhar para aquilo (tão vívido!) era triste demais. A tia sentou-se no sofá e enterrou a cabeça entre as pernas. Silêncio. O vento uivou. Uuuuuuuu!

− Quando eu tinha uma lembrança dele na Europa…− Disse de repente, na versão que a vó me contou anos depois− Entrava em um estado de transe, e não conseguia fazer mais nada.

“E eu tinha medo de voltar”, ela falou enquanto chorava. Mais que isso, esperneava, repuxando o próprio cabelo, com tiques no olhar.

− Meu filho tinha morrido e não conseguia falar isso para ninguém. Um dia algum europeu, um velho conhecido, me parou e perguntou sobre os gêmeos. Ele não sabia do acidente. Eu disse que estavam bem. Tinha em minha mente que tudo não passara de um sonho. Quando eu voltasse, Juliano estaria no berço, vivo, chorando com fome talvez, mas não morto…E continuei com o pensamento até rever essa pessoa. Mais informada, contou que alguém lhe dissera sobre a morte. Lamentou. Disse sentir muito, e que já tinha passado pelo mesmo…Respondi que meu filho não estava morto! ‘Ele tá bem’, eu sorri, mas depois cai em prantos em sua frente, como no dia do enterro, como quando você me deu a notícia, mãe.

− Eu não te apoiei da maneira certa, eu deveria saber como reagir, já tinha perdido uma filha…− Vovó largou o álbum e juntou-se ao clube do choro.

− Houve um tempo em que a loucura tentou me sufocar− Tia Bonina gritou− Foi numa época difícil para nossa família, tão complicada que levou-me a acreditar que os Jardini estavam amaldiçoados, e nada seria capaz de desfazer o poderoso feitiço. Quando nosso barco se estabilizava no mar, não tardava para que uma tempestade se armasse. Éramos envolvidos pelo medo e a insegurança de nos afogarmos em nossos problemas. Os dias cinzentos não ajudavam, e muito menos as pessoas de fora, que agiam como juízes prontos para uma condenação.

− Me perdoa pela minha ausência, minha filha− Vovó se ajoelhou aos seus pés− Eu não conversei com você…Fui egoísta, mas a verdade é que eu não queria reviver a dor!

− E então eu comecei a escrever cartas pro Juliano, e telefonar pra ele. Eu perguntava ‘Tá tudo bem, meu filho?’. Ele tinha aprendido a falar, a voz era tão bonita, e contou-me que tinha cortado o cabelo, e que conhecera um novo amigo no primeiro dia da escola…− E tia Nina soluçou como nunca. Gritava e despejava para fora todos os anos de sofrimento. Não dava atenção para as palavras de vovó, que abraçou-a. As duas se confortaram então. O que me lembrou daquele trecho da música Pedaço de Mim “A saudade é arrumar o quarto. Do filho que já morreu.”

Vó Leda me disse que, enquanto agarrada a filha, percebeu que Jasmim estava presente na cena o tempo todo, observando a conversa sentada nas escadas, ainda em seu pijama. E lacrimejando. Mas assim que foi vista, voltou para o quarto. OH PEDAÇO DE MIM, OH METADE AMPUTADA DE MIM.

No breu, quando nos preparávamos para dormir, ela foi até minha cama, gostávamos de dividir os lençóis e os problemas. Me mostrou um vídeo da mãe durante um desfile na Suíça.

− Prima, acha que ela estava feliz?− Tentou esconder as intenções na pergunta, varreu-as para debaixo do tapete, mas achei todas.

− Não. Ela não estava− Jas desligou o celular e refletiu através de longos respiros simbólicos− Mudando de assunto…Aquele garoto da minha sala que você gosta, Fred, te enviou um convite. Ele trabalha como fotógrafo com o pai, e vai cobrir esse evento amanhã, gostaria que você fosse, ele disse que teve uma ótima impressão de ti.

Prima Jasmim ficou tão empolgada que me senti culpada por ter mentido (atuo bem) para ela. Mas o motivo era plausível.

No dia seguinte, um sábado, quando tia Bonina acordou (era seu último dia na casa, iria mudar-se à tarde), inventei que o centro de Modelos a recrutara com urgência para ser jurada de um evento vespertino, pois uma das avaliadoras havia sido internada com suspeita de febre amarela. Minha sorte foi que ela não requisitou detalhes, embora eu os tivesse prontos. Apenas assentiu e pediu que eu retornasse confirmando sua presença.

O evento era o desfile das modelos plus size, mas nenhuma das duas sabia disso. Ambas desconheciam também o fato de eu ter reservado cadeiras coladas para que ficassem lado a lado, e que Fred não estaria lá com o pai, e a avaliadora estaria perfeitamente livre de doenças. Confidenciei o plano com vovó. Era minha última chance de aproximá-las, eu, o cupido maternal, já que a tia iria embora, e o contato seria perdido, quando estava prestes a ser retomado. Não iria deixar a maldição vencer. NUNCA!

Me escondi em uma das fileiras com vovó ao meu lado, tentamos nos disfarçar com lenços e óculos escuros. Eu, sob a identidade de Lorena, fiquei irreconhecível. A vó foi menos criativa no seu novo nome. De Leda para Ieda.

Prima Jas foi a primeira a chegar. Pude observá-la procurando por Fred com anseio. Estava até roendo a unha, o que não tirava o charme pela ótima produção que eu tinha feito. O lugar comportava quase duas mil pessoas, e a capacidade máxima fora atingida com sucesso. Inventei para tia Nina que o apresentador a chamaria no meio do desfile, portanto ela deveria ir para as fileiras primeiro. Ela buscou o número de seu assento e pediu licença para chegar até ele. Ao sentar-se identificou quem era a pessoa ao seu lado, e o mesmo ocorreu com Jasmim. As duas arregalaram os olhos, e me diverti com a situação.

− O que foi isso? Uma tramoia?− Fiz leitura labial, estava longe, mas era expert nisso. Jas bufou− Eu devia saber!

− Foi sua prima quem me disse que…− E não completou a frase. Como se estivessem conectadas, perceberam no mesmo segundo minhas intenções, mas não puderam dizer mais nada, pois as cortinas abriram-se, e o mestre de cerimônia começou a discursar, a medida em que a luz ia diminuindo, e os flashes crescendo.

− As modelos que virão a seguir são pessoas realizadas, bem sucedidas, que já não se importam mais com os comentários maldosos a seu respeito. Elas têm auto estima, pessoal! Nossas amadas gordinhas são muito felizes, independentemente de tudo, eu garanto! Que venham elas!− Ele disse, sendo ovacionado. Eu aplaudi com gosto, mas não prestei atenção no desfile, queria checar tia Bonina e Jasmim. Não se falavam, contudo observavam com a maior atenção a passagem das modelos.

Logo comprovei uma transformação, tanto na cabeça de titia, quanto na da prima Jas. Eram seus olhos mais brilhantes que os flashes, era o passado sendo varrido, e os sorrisos sendo costurados. A resposta ao desfile foi conjunta. De meu lugar, vi algumas lágrimas saindo. De alegria. De reconhecimento. De perdão. Estavam fascinadas com o que viam. A tia se livrava dos preconceitos, talvez não de todos, mas era questão de tempo. Jas inclinou a cabeça e olhou diferente pra mãe. Só eu percebi isso, vovó estava concentrada em venerar as modelos. Foi uma fração de segundo significante.

As luzes voltaram ao normal com o fim da apresentação, a qual eu lamentei não ter dado a devida atenção, mas eu queria me certificar de que tinha agido corretamente. Ponto para mim.

− Eu…− Jasmim titubeou− Eu acho que quero ir ao médico. Não desejo a magreza…Mas não me sinto confortável desse jeito. Essa não sou eu. Não mais.

Tia Bonina apenas sorriu.

− Me perdoa…Fui incompreensiva, não entendia a sua história, e…Não precisa ir embora, pelo contrário, é só que…

− Eu te amo, filha− Disse finalmente− Eu nunca deixei de te amar.

As mãos foram ensaiando um aperto. Estavam tímidas, principalmente a da Jas. Se desencontraram algumas vezes até finalmente se entrelaçarem. Ali eu percebi que a maldição da família, se é que já tinha existido algum dia, estava desfeita para todo o sempre. Levantei-me e pedi licença para vovó pois iria lavar o rosto. Senti uma leveza em meu corpo, estava prestes a flutuar, feliz, comovida, como se os aplausos fossem para a dupla reconciliada.

Mas, do nada, todo o sentimento se esvaziou, e fui profundamente apunhalada por uma facada de tristeza e mágoa. Paralisada no meio do caminho para o toalete, visualizei o acidente, os corpos de meus pais, seus rostos desfigurados, e senti o cheiro da panqueca de tio Pietro. O desfile se virou numa cozinha e me dirigi às panelas, porém ninguém estava lá para me receber, nenhum humano, apenas a panqueca queimada. Na minha alucinação, prima Jas sorria com deboche para mim, gritando que tinha mãe, enquanto eu era uma mera órfã. Gritei por vó Leda, porém o som se perdeu dentre a alegria geral da plateia. Voltei para minha fileira, suando friamente, a vista borrada, o coração prestes a sair pela boca. E chorava. Quando cheguei na cadeira, vovó estava morta, constatei em seu pulso. Tocava nos ombros do povo, eles pareciam não se importar. Eu sabia que aquilo não era real. Olhei mais uma vez. Ela já tinha sumido. Em seu lugar, álbuns de fotografias com retratos de meus pais comigo ainda bebê. Mas no lugar de suas faces, máscaras de palhaço. Tia Bonina surgiu e cruzou os braços. “Ninguém se importa contigo”, ria. Me estapeou e cai no chão de verdade, mas levantei por conta própria e corri para a parte externa do salão.

Desacelerei ao chegar à beira da escadaria de pedra, que dava acesso ao estacionamento. “Foi uma fração de segundo significante”. Minha mente tomou-se de formas estranhas e vozes sussurrando para que eu me jogasse. O Vale da Morte, a maldição regressara, e me queria como prato principal. O barco afundava. SE JOGUE, SE JOGUE, SE JOGUE.

Eu não me joguei, apenas sentei-me no último degrau e abaixei a cabeça, evitando a tormenta conflituosa que zombava de mim. E então perguntei ao vácuo o porquê de não ter morrido também. Fui ingrata, incompreensiva e presunçosa. Queria a mãe comigo, e também papai. Queria escrever cartas para eles, e falar com eles, mas não podia.

Houve um tempo em que a loucura tentou me sufocar.

Felizmente, uma flor brotou naquele jardim obscuro. Alguém tocou em meu ombro. Deparei-me então com Jasmim, tia Bonina e vó Leda de mãos dadas. E estendiam o convite para que eu me juntasse a elas, sorridentes.

− Vamos, Frésia− Prima Jas disse.

Eu me levantei e o horror parou de me perseguir. Na verdade, foi a última vez que ele tentou vencer a qualquer um de nós, Jardini. Nos demos as mãos e saímos do estúdio, unidas, fortes, indestrutíveis, representando o verdadeiro significado de uma família. Éramos nosso próprio antídoto.

Comemos panquecas naquela noite. Estavam deliciosas.

 

 

Próximo episódio: A descoberta da homossexualidade de Petúnia foi um momento dramático, principalmente na relação com o seu pai. Expulsa de casa ainda hoje, reconstrói sua vida em São Paulo e anos depois pode realizar o sonho em ter um filho e o reencontro com a família será inexperado.
Autor: Otávio Coêlho
Data de publicação: 27 de março

 

Victor Morais

Escrevi as webs novelas Beira-Mar e Filho Amado que foram publicadas no portal. Atualmente escrevo " Ser Humano", que se passa nos anos 80 e trata da relação complicada entre mãe e filha. Drama, emoções, cotidiano, conflitos familiares...Esse é o meu estilo.

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One thought on “Jardim Brasil [ed. 14]: A união destrói a maldição

  • Fiquei encantado com sua sua história @Victor-Morais!
    Valeu muito a pena este projeto por chegarmos a este ponto e perceber que há tantas coisas bacanas a serem compartilhadas como a história da Frésia, da Petúnia, da Jasmin, enfim, da família Jardini. O tempo todo, a Frésia contando a história da prima e tia e sentindo-se sufocada por seus próprios medos. A maldição foi destruída no final a mensagem de união foi captada de forma tão avassaladora que me deixou sem fôlego neste final.

    Sua narrativa é muito empolgante e prende desde o primeiro parágrafo. Falando dos bastidores desta produção, fico feliz de você ter insistido e mesmo que parece “que não ia sair nada”, chegaste a esta obra. Obrigado por insistir neste projeto e o fruto é esta história que fico torcendo para que existam muitas outras aí na sua “cachola” e possas compartilhar conosco.

    Abraçooooo

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